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Artigo

Como o medo e a coragem fizeram Bloodborne reinventar a série Souls

A revolução de Hidetaka Miyazaki com elementos de terror e jogabilidade ofensiva

Omelete
7 min de leitura
24.03.2025, às 19H40.
Atualizada em 25.03.2025, ÀS 15H35
Bloodborne

Créditos da imagem: Divulgação/Sony

O Caçador dá passos lentos. A água bate em suas canelas e o chão é duro abaixo dela. Sua mão direita segura com firmeza a lâmina, enquanto a mão esquerda aponta a arma em direção à criatura. Ela é gigante e imponente. Seus tentáculos e asas aumentam a forma gosmenta e horrorosa da monstruosidade, assustadora mesmo em seu sono. Finalmente, após respirar profundamente, o Caçador, com toda sua força, ataca a criatura. Ela acorda.

Pergunte a uma sala de cem pessoas sobre o que é Bloodborne, o espetacular título de ação e sobrevivência da FromSoftware lançado em 2015 para o PlayStation 4, e provavelmente a maioria responderá que o jogo é sobre medo. Tema o antigo sangue, no fim das contas.

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Quando foi lançado, Bloodborne trouxe algo que nenhum projeto dirigido por Hidetaka Miyazaki tinha até então: expectativa.

O hit cult Demon’s Souls lançou a desenvolvedora japonesa e seu diretor para o mundo, enquanto Dark Souls elevou a reputação e fama da equipe a um novo patamar, tornando-se provavelmente o jogo mais influente da década. Dark Souls 2 reforçou esse padrão, mas o envolvimento limitado de Miyazaki e a recepção morna impediram que ele decolasse.

Bloodborne
Divulgação/Sony
 

Mas aqui está Bloodborne. Um título pelo qual a Sony pagou para ter exclusividade, o primeiro grande projeto de Miyazaki após Dark Souls e a saída da FromSoftware de um cenário de fantasia clássico para uma mistura do gótico com vitoriano. Algo genuinamente novo. A expectativa, então, estava lá.

Para muitos, inclusive para mim, essa era a introdução ao mundo Soulsborne, e dele se esperava algo excelente e especial. Afinal, essa era a fama de Dark Souls. Mas agora, a assinatura desses desenvolvedores era conhecida. Seus jogos eram difíceis, imperdoáveis, brutais, e os trailers deixaram claro que Bloodborne abraçaria o nível alto de desafio. Ele seria mais sangrento. Seu combate era intenso e demandaria mais precisão, seu universo seria mais assustador graças ao design de criaturas dignas de pesadelos e da atmosfera opressora que existia ali.

Expectativa não significa apenas a antecipação de algo bom, a espera por uma novidade. Ela representa também uma fonte de ansiedade e inquietação. É algo que te deixa inquieto. Uma fonte de medo. Bloodborne é um jogo sobre medo.

A criatura se virou para o Caçador. Aquela atrocidade se agigantava diante de seu opositor. Sua cabeça enorme, com olhos separados e uma rachadura inexplicável, agora o encarava. A criatura não era rápida, mas seus golpes eram brutais. ‘Mantenha-se distante e espere uma abertura’, pensou o Caçador. Então, num piscar de olhos, ela se jogou pra frente e o esmagou com sua cabeça. O que eram aquelas coisas no meio dela? Vermes? Tentáculos? De lá saiu uma gosma que o deixou ainda mais atordoado. O Caçador foi derrotado em segundos.

Bloodborne
Divulgação/Sony
 

De fato, Bloodborne assusta. Talvez não seja possível considerá-lo como um jogo de terror, mas a combinação da dificuldade com a atmosfera farão a maioria dos jogadores, especialmente os que nunca enfrentaram Souls antes, parar e respirar. Mesmo veteranos se verão desprevenidos quando perceberem que o combate aqui é mais veloz. Que não é possível contar com um escudo. Que o timing é tudo e que atacar é, muitas vezes, a melhor defesa.

Dizer que Bloodborne é sobre medo é uma resposta incompleta. Sim, o jogo trata dessa emoção. Porém, a verdade é que Bloodborne é um jogo sobre perseverar apesar do medo. É sobre lutar de novo, apesar do gigante à sua frente, do monstro berrando ao seu redor, da velocidade com a qual aquela besta abana os braços tentando te acertar. De certa maneira, todos os jogos da From são sobre medo. Mas em Bloodborne, o medo deixa de ser só pretexto e vira o próprio texto.

Bloodborne começa com um clima gótico digno de um Drácula ou de um Frankenstein. Cidades de pedra, tochas acesas nas ruas, a peste mantendo os que não podem se proteger dentro de casas com portas fechadas. Soa familiar? É esse o cenário que o jogador encara enquanto explora Yharnam e seus arredores. Monstros, feras, animais mutantes.

Aqui, o medo tem forma, nome e sangue. Ele pode ser morto. Você vai sofrer e vai morrer - é uma experiência FromSoftware antes de tudo. Mas, depois das primeiras horas, a morte não será mais encarada da mesma forma. Aos poucos, a morte deixa de ser derrota e vira parte de um ciclo natural. Você ganhará maestria, aprenderá o tempo certo de agir e ficará melhor. Chefões serão derrotados, áreas descobertas. Você avança.

Mas aí algo acontece. Você pula num lago. Há uma aranha. Um pesadelo. Do nada, saímos de Bram Stoker e Guillermo del Toro. Agora, estamos em H.P. Lovecraft Robert W. Chambers. Agora, o medo não tem forma ou rosto.

Bloodborne
Divulgação/Sony
 

O Caçador acorda. Ele vai até a porta da arena novamente. Ele pensa e pondera. Tenta descobrir onde errou e se prepara para tentar pela segunda vez. A besta precisa ser abatida, mas como? Lembrar daqueles olhos, daquelas asas e daqueles tentáculos o deixa apreensivo. Ele dá meia volta. Ele aprendeu a temer o sangue antigo e algo o diz que o sangue à sua frente é um dos mais antigos em Yharnam. Ele cede ao medo.

Depois que você derrota Rom, a aranha, Bloodborne muda. Saímos do terror gótico para o horror cósmico. Yahar'gul, com sua lua de sangue e céu roxo, anuncia a chegada de um novo jogo. Não é a toa que um encontro com dois caçadores inimigos brutais o aguarda, ou que os gigantes e horrorosos Amygdalas se encontram por toda parte, revivendo inimigos a partir do sangue e os deixando mais agressivos. É uma área sem misericórdia e deixa bem claro ao jogador que muita dor o espera.

É aqui que o jogo tira o tapete debaixo dos seus pés e diz “agora você enfrenta outro tipo de ameaça.” Os chefes passam a ser menos criaturas e mais presenças que mal tem rostos - pense na Mergo’s Wet Nurse ou até mesmo na luta final contra a Moon Presence. O clima é completamente diferente. Miyazaki e a FromSoftware argumentam que o único terror mais assustador do que aquele que é material para pesadelo é o terror que permite que os pesadelos sequer existam. Algo mais existencial e profundo.

Coragem apesar de medo. É por isso que, em Bloodborne, deixar o escudo para lá é uma escolha tão temática quanto de design.

Dizer que a FromSoftware não tem narrativa é uma grande injustiça. O ato de descartar o único escudo do jogo, ao perceber sua inutilidade, exclama mais temas e ideias do que roteiros de 20 mil páginas de jogos de mundo aberto cheios de NPCs e sidequests. É Bloodborne te dizendo: tenha audácia e não se esconda atrás de uma barreira inútil. O único jeito de derrotar o medo é atacando. Por que você acha que recupera vida se golpear um inimigo logo após levar dano? Retribua, não hesite. Lute.

Bloodborne
Divulgação/Sony
 

Quando Ebrietas, Mergo’s Wet Nurse e outros Great Ones - uma clara derivação dos Old Ones de Lovecraft - aparecem, o jogo muda. Há danos mentais, cenários diferentes, pesadelos vivos em todo lugar. Mas você e sua foice ainda podem caçar. Você ainda pode atacar e matar. Eles ainda têm sangue. Bloodborne pegou toda a expectativa que os jogos da FromSoftware construíram - o combate imperdoável, a cobrança por perfeição na luta, o design impedioso - e apresentou ao jogador sob uma mensagem:

Lute. Tenha coragem. Tente de novo.

Normalmente, medo e covardia são colocados de um lado e coragem e fé, do outro. Você com certeza já ouviu que coragem não é a ausência do medo, mas a ação apesar dele. Clichês são o que são por uma razão. Na realidade de hoje, com as ameaças que nos fazem ficar em casa, não sentir medo significa que você provavelmente está ignorando a realidade. Fé não vem de fingir que a situação não está desesperadora, mas de acreditar e continuar indo em frente mesmo assim.

Não adianta fingir que Bloodborne não é intimidador. Tampouco adianta se desesperar e desistir. O jogo vai te punir independente da sua opinião sobre ele. Mas continue tentando e aprendendo e em algum momento na sua jornada você notará que algo mudou. Agora, você está caçando eles.

O Caçador deu alguns passos e parou. A porta para Ebrietas, agora atrás dele, parecia emanar medo e morte. Ele observa o sangue seco em sua roupa, a lama em suas botas. Ele se lembra das bestas e monstros que ficaram para trás, de todas as lutas que pareciam impossíveis. Não há outra escolha. A filha do Cosmos tem que morrer.

Ele entra na arena novamente.

 
Texto publicado originalmente no The Enemy em 15 de novembro de 2020

 

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