JCVD: Relembre o filme que mostrou que Van Damme sabe atuar

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JCVD: Relembre o filme que mostrou que Van Damme sabe atuar

Produção de 2008 tira sarro dos clichês de filmes de ação e inclui monólogo emocionante do ator

30.07.2021, às 06H00.

Em 2008, Jean-Claude Van Damme já era “coisa do passado” em Hollywood. Se nos anos 1990 o astro belga liderava épicos de ação como O Alvo e Street Fighter, na década seguinte aos poucos sua filmografia começou a se voltar quase exclusivamente para produções baratas, que eram lançadas diretamente em vídeo (na época, DVD), e sua imagem passou a ser mais atrelada a escândalos dos tabloides e momentos vergonhosos da cultura pop (o Domingo Legal que o diga!) do que ao próprio cinema. Foi neste momento que entrou em cena o filme JCVD.

Escrito e dirigido por Mabrouk El Mechri, fã de longa data de Van Damme, o longa merece ser lembrado hoje (30), dia em que o ator faz sua estreia na Netflix com O Último Mercenário, pelo insight valioso que nos deu ao ícone e ao homem por trás dele - e por mostrar que, além de “chutar bundas”, Van Damme também sabe atuar.

Na trama de JCVD, ele interpreta uma versão ficcionalizada de si mesmo. Passando por um momento difícil após perder a guarda da própria filha em uma audiência judicial, ele volta à Bélgica para “recomeçar”, mas se vê envolvido em um assalto quando vai a uma agência dos Correios para receber uma transferência de dinheiro de seu agente. Percebendo que a presença de uma celebridade pode ajudá-los, os assaltantes, cada vez mais desesperados, fazem a polícia acreditar que Van Damme está no comando do crime.

O roteiro de Mechri tira sarro dos clichês dos filmes de ação, mas não daquela maneira carinhosa, que disfarça uma vontade de segui-los, que vemos em Hollywood. Em JCVD, o tom é simplesmente amargo - há um comentário afiado, por exemplo, sobre o frequente uso de atores árabes como vilões nos longas do gênero. Os personagens que são fãs desse tipo de filme, enquanto isso, são retratados como figuras patéticas, mesmo que bem intencionadas. JCVD não se considera intelectualmente superior a eles, mas julga a falta de maturidade com a qual eles abraçam a fantasia e deixam ela se infiltrar em suas ações na vida real.

Essa confusão de ficção e realidade, mostra o filme, é letal para Van Damme. Durante JCVD, o ator digladia com a própria imagem, que cultiva o respeito de alguns, a zombaria de outros, e uma mistura estranha das duas coisas na maioria das pessoas. Viver nesse limbo custa caro para uma pessoa de carne e osso, e a expressão de constante irritação que Van Damme exibe durante o filme não parece injustificada.

O monólogo

Na marca de 1h08 de filme, JCVD aperta pause na trama para ouvir o seu astro - realmente ouvi-lo, sozinho, em um monólogo entregue direto para a câmera. “Este filme é para mim. Aqui estamos nós, eu e você”, ele nos diz, logo no começo.

Durante os minutos seguintes, Van Damme fala de tudo: sua chegada a Hollywood, a falta de dinheiro, o choque de moralidades entre o mundo das artes marciais e o do cinema, a fama de mulherengo (“Quando uma mãe tem três filhos, ela não sabe escolher qual ama mais. Se você tem 10 mulheres durante sua vida, cada uma tem algo de especial”), o vício em cocaína (“Eu saí dessa”, ele repete, sério, encarando a câmera), os privilégios de quem “conseguiu realizar o sonho que tinha aos 13 anos”, o remorso que vem com isso, a sensação de não ter feito nada de valor com a chance que lhe foi dada, de não ter deixado nenhuma marca verdadeira no mundo.

Nesta cena, o ator belga é visceral. Ele chora, levanta a voz, mostra seus músculos, e considera - o rosto pintado com a exaustão de quem já gastou muito tempo pensando nisso - os efeitos da fama em sua vida. Aqui, o filme, e o próprio Van Damme, se aproveitam daquela mesma confusão entre realidade e ficção para entregar uma dose cavalar de algo que pode estar presente nas duas coisas: honestidade.

O monólogo de JCVD pode ser todo uma criação de Mechri, todo uma improvisação de Van Damme, ou uma mistura das duas coisas (como costuma ser em uma arte colaborativa como o cinema). Não importa, na verdade. O fundamental é que, naqueles oito minutos, e no filme como um todo, Van Damme convence. Emociona. Faz entender uma parte dele que nunca é vista ou discutida sem um véu de ironia por cima dela.

Eu vi tantas coisas. Nasci na Bélgica, mas sou um cidadão do mundo. Viajei muito. É difícil para mim julgar as pessoas, e é difícil para as pessoas não me julgarem. É mais fácil me culpar. Sim, é algo por aí”, finaliza ele, resignado, secando as lágrimas. Em JCVD, Van Damme não é o herói de ação que salva o dia - no máximo, ele é um homem de meia idade com alguns truques bem ensaiados e boas intenções. Mesmo assim, naquele momento, ele ganha o jogo. O espectador está com ele e não abre. 

Infelizmente, JCVD não está disponível em nenhuma plataforma de streaming no Brasil atualmente.

Van Damme-verso

Apesar de não ter feito nenhuma medida relevante de sucesso comercial (este é um filme independente belga, afinal de contas), JCVD parece ter, de alguma forma modesta, mudado o tom do discurso cultural sobre Van Damme. 

Ele não parou de fazer filmes de ação baratos direto para DVD, e mais tarde para streaming, mas também apareceram projetos como Soldado Universal 3: Renegação (2009), que foi um queridinho inesperado da crítica; Frenchy (2010), drama sobre um veterano de guerra que ele escreveu e dirigiu; participações especiais nas franquias Kung Fu Panda e Os Mercenários; as sequências de Kickboxer (2016, 2018); e por aí vai. Mesmo constatar que Van Damme é popular o bastante para conseguir um contrato com a Netflix já diz muito sobre como sua imagem se reabilitou nos anos desde JCVD.

Essa revitalização rendeu até um outro projeto em que Van Damme interpreta a si mesmo, embora em tom mais claramente jocoso. Jean-Claude Van Johnson durou apenas uma temporada de seis episódios no Amazon Prime Video, entre 2016 e 2017, criando uma realidade em que o astro de ação também atua, secretamente, com um dos espiões mais letais do planeta. Uma série divertida e inteligente, que foi cancelada cedo demais.

Se O Último Mercenário fizer sucesso, fica a torcida pela expansão desse curioso, e curiosamente tocante, “Van Damme-verso”.

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