Timothée Chalamet como Bob Dylan em Um Completo Desconhecido

Créditos da imagem: Searchlight Pictures/Pennebaker Inc.

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Um Completo Desconhecido é a antítese de Bob Dylan, com uma exceção

Se o filme fica aquém do astro, Timothée Chalamet captura sua essência

Omelete
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27.02.2025, às 07H00.

Até nos documentários, Bob Dylan parece surgir como um espírito vindo dos ventos. Sua primeira aparição em Festival, maravilhoso filme de Murray Lerner sobre os anos de auge do Festival de Folk de Newport – palco do clímax da cinebiografia Um Completo Desconhecido com Timothée Chalamet – acontece como um relâmpago. Do nada, ele está ali – imediatamente energizando tanto o público presente quanto quem está, décadas depois, assistindo através de uma tela.

Já no ótimo Dont Look Back, de D.A. Pennebaker, Dylan parece questionar aqueles ao seu redor mais do que ser questionado, e depois de fazer um dos retratos mais detalhados do músico em No Direction Home: Bob Dylan, Martin Scorsese retornou ao homem com o documentário Rolling Thunder Revue, onde histórias inventadas são tão parte da narrativa quanto os fatos. Tudo isso reflete a verdade sobre a lenda do folk e rock. Bob Dylan é um dos homens mais debatidos, estudados e observados da história do entretenimento ocidental, mas é, também, mais definido por incertezas e contradições.

Este é, afinal, o homem que voltou as costas para um dos maiores movimentos sociais dos EUA no seu ápice. A cultura folk, os hippies e os pacifistas foram os responsáveis por elevá-lo ao posto de messias, algo que Dylan não queria. Quando ele ligou a guitarra elétrica com "Maggie's Farm" em 25 de julho de 1965, frustrando fãs e seguidores igualmente, o “traidor” Dylan pareceu estourar o balão daquele estilo de vida, mas abriu caminho para a mais significativa de suas várias transformações como artista.

Nos cinemas, nenhum filme capturou melhor essa natureza transitória do que Não Estou Lá, que podemos descrever como uma cinebiografia experimental. No filme, uma peça ousada de conceitualização que literaliza as diferentes facetas do seu assunto principal da maneira mais clara e interessante possível, o diretor Todd Haynes dividiu Dylan em muitas vidas – a versão mais próxima da realidade é interpretada por uma magnética Cate Blanchett, mas outras facetas têm outros rostos. Christian Bale faz um pastor para refletir a virada de Dylan para o cristianismo, Ben Whishaw interpreta um poeta, Heath Ledger faz um astro do cinema, Richard Gere faz um fora da lei vindo do oeste e um jovem Marcus Carl Franklin interpreta um prodígio musical chamado Woody Guthrie.

Guthrie, claro, é a principal inspiração musical de Dylan, e Um Completo Desconhecido inicia com o protagonista indo visitá-lo (Scoot McNairy) no hospital e tocando diante dele e do Pete Seeger de Edward Norton, o primeiro de vários momentos (ou seriam mitos?) icônicos de sua vida que o diretor James Mangold dramatiza com destreza, e pouquíssimos riscos, no filme. Um dos responsáveis por organizar Newport, Seeger foi um mentor para Dylan, mas qualquer ideia de contracultura representada por eles foi negada por Dylan naquela noite elétrica – de certa forma, entrar no rock ‘n roll foi uma maneira de pular para a próxima fase da rebeldia. Se o folk estava entrando na moda, era hora de virar roqueiro.

Novamente, tudo isso é colocado em tela de maneira eficaz e direta por Mangold, mas é notável como seu filme parece ir na contramão de tudo que Dylan representa, e que foi entendido por Não Estou Lá, Rolling Thunder Revue e até coisas como Inside Llewyn Davis, um drama que contorna sua presença de tal maneira que quase podemos enxergar sua sombra por cima do personagem de Oscar Isaac. Todas essas obras estão mais interessadas no fantasma. Na presença. Mangold quer o tangível – os romances, as mulheres, as letras, a banda. Isso faz de Um Completo Desconhecido a antítese do que Bob Dylan passava em sua música.

O título do filme vem do refrão da tremenda música que inaugura o seu período elétrico: "Like a Rolling Stone". Uma das maiores obras de sua carreira, a abertura do álbum Highway 61 Revisited descreve uma figura que esteve entre ricos e poderosos mas agora navega sem direção e sem casa; um completo desconhecido. Não é à toa que é desta faixa que Scorsese tira o título de No Direction Home: além do seu significado dentro da discografia, "Like a Rolling Stone" também parece definir o próprio cantor.

Se você tentar categorizar Bob Dylan – politicamente, espiritualmente e artisticamente –, encontrará obstáculos em cada esquina. A única forma de defini-lo parece ser justamente pela ausência de respostas. Ele é um ícone, mas não se comporta como tal - Bob Dylan nunca deixou de ser uma pessoa em primeiro lugar. Ele é Bob Dylan, ora profeta, ora traidor, ora estrela. Sempre Bob Dylan.

Mangold, para seu crédito, não foge das realidades conhecidas sobre a figura. Seu Dylan consegue ser ácido e sarcástico tanto quanto é charmoso e cativante, e o diretor não tem medo de colocar em tela alguns de seus piores comportamentos. Mas da estrutura do roteiro, que foca no momento mais explorado da vida de Dylan (e portanto tem menos de novo a dizer), até o estilo da direção, que filma os shows e apresentações de uma maneira convencional, Um Completo Desconhecido oferece mais uma espécie de “greatest hits” do que uma contribuição grandiosa ao Dylanismo.

A exceção a isso, porém, é a atuação de Timothée Chalamet. Se o filme não oferece muito espaço para o mistério, seu rosto contém multitudes. Chalamet venceu o SAG Awards pelo papel e fez um ousado discurso onde declarou esse filme – um projeto para o qual ele passou cinco anos se preparando – como um passo em direção a seu alvo: ser um dos grandes. Dylan nunca falaria isso, mas seu desejo sempre foi inovar e revolucionar seu próprio estilo musical antes de qualquer coisa – incluindo o movimento folk – e talvez isso ajude o ator a se encaixar tão bem no papel. “Ele é interessante de um jeito essencial, até porque é imprevisível: não sabemos o que o Dylan de Chalamet fará em sequência, e por isso estamos sempre de olho nele.

É uma interpretação que reconhece a aparente contradição no centro da conversa de Bob Dylan não como um paradoxo, mas como uma tensão retroalimentativa: ele é tão analisado justamente porque há espaço para especulação. Como um poço sem fim, sempre há mais para descobrir. O próprio músico celebrou a atuação de Chalamet, e com razão. Num filme que simplifica demais o cantor, Chalamet entende sua essência: não dar todas as respostas. Ser um coringa, um espelho, um segredo. Um completo desconhecido.

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