TELA QUENTE - Emmanuelle(s): Diretoras mulheres e o sexo no cinema - Parte 4
No momento em que toda uma geração discute o lugar da sexualidade na mídia, Omelete fala com cineastas e especialistas para destrinchar a história d’Aquilo na tela grande
O ESPECIAL TELA QUENTE é uma reportagem do Omelete sobre a história da representação do sexo no cinema, os debates atuais em torno dela, e o impacto na indústria do audiovisual. Composto de seis matérias jornalísticas apoiadas em pesquisa e entrevistas com diversos especialistas - psicólogos, críticos, cineastas, coordenadores de intimidade e mais -, o especial será postado em capítulos entre os dias 2 e 6 de setembro (ou 6/9, quando é comemorado o Dia do Sexo).
- Leia aqui a Parte 1 - Introdução: O thriller erótico morreu?
- Leia aqui a Parte 2 - Rala-e-rola em P&B: História do sexo no cinema
- Leia aqui a Parte 3 - Agora em cores!: Sexo LGBTQIAPN+ no cinema
O tamanho da filmografia de Lois Weber é motivo de debate entre historiadores do cinema. O marido da cineasta, Phillips Smalley, estimava que os dois haviam colaborado - em várias funções, entre direção, roteiro, atuação, montagem e produção - em 350 títulos, incluindo curtas e longas-metragens. O IMDb, fonte preeminente da indústria cinematográfica, lista 140 filmes dirigidos por Weber, muitos deles co-creditados a Smalley. Destas centenas de produções, talvez 20 tenham sobrevivido, enquanto a maioria se perdeu para incêndios, mudanças, desgaste do tempo ou… bom, só se perdeu.
De qualquer forma, o corpo de trabalho de Weber é uma das evidências mais óbvias de que mulheres têm feito cinema desde sempre - e têm inventado o fazer cinematográfico desde sempre também. O cultuado Suspense (1913), assinado por ela, foi pioneiro no uso da tela dividida, e ainda trouxe algumas das primeiras experimentações com som da história do cinema; Onde Estão Meus Filhos? (1916) chocou o público ao discutir abertamente sobre o aborto; enquanto A Mancha (1921) encarou de frente o problema das desigualdades sociais nos EUA. Mas é outro filme dela, Hipócritas (1915), que nos interessa aqui.
Com 54 minutos de duração, Hipócritas entrelaça a história de dois homens de fé, um vivendo nos EUA do início do século XX e outro na Europa medieval. Este segundo, Gabriel (Courtenay Foote), é injustamente caçado por uma multidão enraivecida após conceber e esculpir a estátua de uma garota nua, que ele pretendeu como uma representação terrena da Verdade. Em outro recurso inovador, o filme dá vida à obra do monge com técnicas de sobreposição que a transformam em uma espécie de fantasma, e a atriz Margaret Edwards aparece nua andando pelos cenários onde se passa a história, expondo a hipocrisia dos religiosos que perseguiram Gabriel.
Trata-se da primeira cena de nudez frontal feminina da história do cinema comercial estadunidense, mas o pioneirismo de Weber não se traduziu a uma liderança feminina nas representações de sexualidade na sétima arte. A cineasta, na verdade, logo se tornaria a exceção à regra: quando o cinema foi se tornando um negócio lucrativo, e grandes estúdios foram se estabelecendo em Hollywood, os homens do dinheiro começaram a deixar sua preferência por contratar colegas do sexo masculino cada vez mais evidente.
Dentro ou fora do sistema de estúdio dos EUA, o intervalo entre Weber e autoras como Chantal Akerman (Jeanne Dielman, Eu Tu Ele Ela), Catherine Breillat (Uma Adolescente de Verdade, A Última Amante), Liliana Cavani (O Porteiro da Noite, Além do Bem e do Mal), Jane Campion (O Piano, Fogo Sagrado!) e Lisa Cholodenko (High Art, Minhas Mães e Meu Pai), que voltaram a pautar a sexualidade e a nudez no cinema pelo olhar feminino, é medido em décadas, e não em anos. Mas o que essa lacuna silenciou, exatamente?
“Eu não gosto muito de generalizar, de dizer que as mulheres fazem um determinado cinema que é obrigatoriamente diferente do realizado por homens”, comenta a crítica e pesquisadora Isabel Wittmann. “Mas é claro que toda bagagem que o artista carrega consigo influi no filme - não só gênero, mas também sexualidade, raça, classe, origem. E acho sim que muitos dos retratos mais interessantes e questionadores da sexualidade humana na história do cinema vieram de artistas feministas e artistas queer. Acho que esses cinemas acabam puxando mais a discussão, desconstruindo noções que são mais rígidas da sexualidade, da exploração do corpo humano em busca de prazer, de quais formas de expressão sexual são possíveis. Enfim, são cinemas que experimentam mais, pensam mais em maneiras inéditas de retratar o corpo e o desejo”.
A título de exemplo, ela cita um filme recente: Babygirl, dirigido por Halina Reijn e estrelado por Nicole Kidman como uma poderosa CEO que reprime os seus desejos por uma relação pautada no fetiche do sadomasoquismo e da dominação - até a chegada do estagiário vivido por Harris Dickinson, com quem ela se envolve. Kidman, retornando a uma espécie de thriller erótico 25 anos depois de sua performance marcante em De Olhos Bem Fechados, venceu a Volpi Cup no Festival de Veneza e foi indicada ao Globo de Ouro pelo papel. No Brasil, Babygirl liderou o ranking de mais vistos no Prime Video por semanas a fio.
“Existe uma inversão de expectativas nesse filme, e ela gira em torno do gênero dos personagens”, aponta Wittmann. “Uma mulher poderosa, mais velha, com carreira estabelecida, situação financeira privilegiada, se envolvendo com o estagiário. Quando a gente pensa no arquétipo dessa história, normalmente os gêneros estão invertidos, né? E, quando viramos isso de cabeça para baixo, a dinâmica em que chegamos não é simétrica. As coisas não se alinham da mesma forma que se alinhariam se fosse ao contrário. Trazer novas vozes, seja em termos de gênero, de raça, de sexualidade, para discutir esses temas, sempre vai trazer novas perspectivas que podem ser interessantes”.
A psicóloga Carolina Freitas de Mendonça (CRP 19/004533) completa o pensamento da pesquisadora, indicando exatamente o que a experimentação dessas diretoras pode ajudar a quebrar: “A sexualidade feminina é frequentemente higienizada e homogeneizada no cinema. Aquela situação clássica em que a pessoa tá pelada na cama, mas coloca o lençol por cima do peito, por exemplo, porque não pode mostrar; ou quando o cabelo está perfeito depois do sexo. Acho que trazer perspectivas diversas para a sexualidade no cinema nos ajuda a ir além disso, a pensar nas formas diversas em que a sexualidade funciona. Dentro da psicologia, eu já vi debates sobre como o ato sexual às vezes fica rígido na tentativa de performar algo que se viu nos filmes. Ao invés de estar ali, no momento presente, a pessoa tenta reproduzir algo, pensa na pressão de fazer igual, de satisfazer dentro dos parâmetros da ficção, que foram criados pela fantasia masculina”.
Outro título que surge nessa conversa é Azul é a Cor Mais Quente (2013), filme francês que retrata o romance entre duas jovens (Léa Seydoux e Adèle Exarchopoulos) e que, após a aclamação inicial da crítica, se tornou ponto de contenção por denúncias de assédio levantadas pelas atrizes contra o diretor, Abdellatif Kechiche. “[Neste filme] temos cenas muito longas de sexo, sem trilha sonora, que tiveram histórias de bastidores muito problemáticas. As atrizes reclamaram de dor, de constrangimento por terem que ficar tanto tempo ali fazendo a cena, de assédio por parte do diretor - e pra quê fazer dessa forma? Ouvi de mulheres lésbicas, por exemplo, que aquela cena não representava de nenhuma maneira a forma como elas transavam”, comenta Carolina.
Quem pode nos dar um relato em primeira mão de sets de filmagem ao redor do mundo é Maria Silvia Siqueira Campos, preparadora de elenco e coordenadora de intimidade que trabalhou em produções como Eleita, Últimas Férias e Senna: “A forma como cada indivíduo enxerga a cena íntima é diferente. Eu já trabalhei com diretores homens e mulheres, e em ambos os gêneros têm gente que pede por algo mais ousado, e gente que não está interessada nisso. Claro que já encarei diretores homens que queriam explorar o corpo feminino de uma forma mais penetrante, e isso é algo que hoje em dia a gente tenta segurar, limitar, porque entende que não existe a necessidade. Mas também tem mulheres buscando isso, essa coisa do corpo - então, acabo achando que é uma questão cultural, além de ser de gênero”.
A própria existência do “coordenador de intimidade”, é claro, foi uma transformação e tanto para o retrato da sexualidade nas telas…
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