Quarteto Fantástico/Star Wars: A Ascensão Skywalker

Créditos da imagem: 20th Century Studios/Lucasfilm/Divulgação

Filmes

Artigo

Por que é mais fácil perdoar “erros” em produções de herói do que em Star Wars?

Multiversos, reboots e “descanonização” do antigo Universo Expandido levam a comportamentos diferentes dos fãs

Omelete
7 min de leitura
31.08.2023, às 12H45.

Dois dos principais pilares da cultura nerd mundial, os fãs de super-heróis e de Star Wars quase sempre andaram de mãos dadas. Claro, nenhum dos grupos foi exatamente fácil de agradar, mas é justo dizer que sua relação com seus títulos favoritos sempre contou com uma devoção inabalável. Da compra de colecionáveis e licenciados à espera ansiosa por novos conteúdos estrelados por seus personagens favoritos, os dois públicos têm comportamentos semelhantes na superfície. Ambos, no entanto, têm reações para lá de diferentes quando o assunto é decepção — especialmente quando essa decepção é canônica.

Por mais simplista que pareça, as reações polares quando um fã assiste, digamos, The Flash e Obi-Wan Kenobi está conectada ao conceito dos multiversos. Seja na TV ou nos cinemas, produções decepcionantes de herói podem facilmente ser ignoradas por leitores, que cresceram cientes da existência e desenvolvimento de universos paralelos no gênero. Além disso, há nesse público específico a certeza de que, caso o título mais recente seja uma bomba, ele passará por um reboot em menos de uma década. O Batman, por exemplo, chegará à sua quarta versão em menos de 15 anos quando Batman: The Brave and the Bold chegar aos cinemas, enquanto o Homem-Aranha passou por três encarnações em 16 anos. Isso sem contar o sem número de animações e séries estreladas por eles na TV.

Com Star Wars, no entanto, esse “descaso” (entre infinitas aspas) é mais complicado. Em primeiro lugar, canonicamente, a franquia ainda não explorou realidades paralelas de forma profunda, fazendo com que todo lançamento oficial, por pior que seja, seja registrado como fato dentro do universo de George Lucas. Ao contrário das histórias de herói, a galáxia muito, muito distante tem, até o momento, apenas uma versão para apresentar aos fãs, que não têm a mesma opção de considerar um título que não lhes agrada como apenas uma história alternativa baseada em seus personagens favoritos. Muito menos também conquistar uma versão mais próxima do que queriam após uma campanha online massiva como já aconteceu com Liga da Justiça de Zack Snyder.

Ao contrário do que acontece em gigantes como Marvel e DC, em que histórias de personagens são planejadas com anos de antecedência e coordenadas por toda uma equipe editorial que toma decisões muitas vezes baseadas no mercado, o universo de Star Wars costumava crescer de forma muito mais orgânica. Ainda que o Universo Expandido tivesse nascido do licenciamento da franquia para outras mídias, sua construção foi muito mais “prática”, no sentido de que Lucas e companhia aprendiam a cada novo passo a como tocar essa parte do negócio. Não que essa primeira leva de derivados multimídia fossem ruins, mas ainda faltava à época o preciosismo que se construiu na década de 1980, após a Trilogia Clássica ser encerrada.

A partir daí, o Universo Expandido começou a crescer de forma muito mais cuidadosa, com autores trabalhando praticamente em conjunto para se certificar de que suas obras não se contradiriam ou para explicar qualquer contradição que pudesse surgir. Esse apreço por uma continuidade sólida, ao lado do selo da Lucasfilm em cada produto, obviamente sacramentou os derivados, licenciados e oficiais, como cânone na cabeça dos fãs — embora não para o próprio Lucas, que seguia desenvolvendo a Saga Skywalker à sua maneira. E cada novo capítulo desse quase-cânone era recebido com o carinho com que era feito.

Aos poucos, livros, gibis e games foram contando aos fãs sobre o surgimento dos Jedi e dos Sith, passando pela Velha República e nos levando a mais de 100 anos depois de Luke Skywalker se casar e virar um exilado político. Ainda que não tivessem sido levadas às telonas, as histórias do Universo Expandido ajudaram a garantir o lugar da franquia como uma das mais apaixonantes de todos os tempos. Elas, no entanto, já não são mais os fatos que cercam a Saga Skywalker.

Existe, desde que a Lucasfilm foi comprada pela Disney, uma relação quase ditatorial entre o estúdio e os fãs de Star Wars — cujo primeiro sinal de alerta apareceu quando a Casa do Mickey decidiu “descanonizar” todo o Universo Expandido, dando preferência a histórias inéditas. O que antes parecia ser a realização de ver Mara Jade Skywalker ou o Sith Ajunta Pall (sim, esse é o nome dele) ganharem vida nas telonas, se tornou uma série de decepções e rachas entre o fandom, que hoje parece menos esperançoso do que nunca com a franquia.

Obviamente, os próprios estúdios compreendem essa diferença de comportamento entre seus fãs, tanto que tomam medidas opostas quando esbarram em uma decepção crítica ou comercial. O MCU, por exemplo, hoje já tem mais produções medíocres ou ruins do que verdadeiramente boas, mas, até as greves paralisarem Hollywood, ainda tem uma gigante lista de lançamentos por vir até Vingadores: Guerras Secretas.

A ideia é similar à da venda dos quadrinhos: colocar o maior número possível de histórias e personagens no mercado para abraçar o maior número possível de consumidores. Na DC, James Gunn e Peter Safran já anunciaram que, além de um novo universo compartilhado, também explorarão versões alternativas de seus personagens que tenham conquistado um público leal, como Batman e Coringa. A cada ano que passa, o público das histórias de capa e collant ganha novas reinvenções de personagens, que chegam nos mais diversos tons e gêneros possíveis.

A Lucasfilm, no entanto, adotou uma postura de cautela, adiando e cancelando grande parte de seus projetos cinematográficos já anunciados e focando em produções televisivas comandadas por nomes de confiança dos fãs, como Dave Filoni e Tony Gilroy. Mesmo jogando no seguro com séries protagonizadas por personagens clássicos como Obi-Wan Kenobi e Boba Fett, o estúdio ainda não encontrou uma forma de contar suas próprias histórias sem ferir a memória afetiva de fãs do Universo Expandido (que, aliás, agora se chama Legends).

De certa forma, heróis como Superman, Mulher-Maravilha, Thor e mais tendem, com o domínio cada vez maior da cultura pop ocidental no imaginário global, a se tornarem em Hollywood o que Hamlet é no Reino Unido: todo ator, em algum momento, vai ter a oportunidade de interpretá-los. E isso os fãs de herói sabem desde os anos 1940, quando os primeiros seriais do Homem de Aço eram exibidos nos cinemas. Ainda existe nesse público a sensação de que eles são os donos dos personagens, ou pelo menos das versões específicas que mais lhes agradam.

Ao negar as histórias do Universo Expandido, a Disney rouba apaixonados mais antigos por Star Wars dessa sensação. Óbvio, ainda existem produções como Rebels, The Mandalorian e Andor que conseguiram certa unanimidade dentro do fandom, mas títulos que abertamente rejeitam a atual linha Legends, como a Trilogia Sequência ou Han Solo, traem, pela falta de uma palavra melhor, as expectativas e a dedicação que seus fãs depositaram na franquia por décadas.

Quando pensamos em O Espetacular Homem-Aranha, Batman vs Superman ou até Lanterna Verde, é fácil entender que houve um erro de tradução natural em suas adaptações. Goste dessas produções ou não, todas ao menos traziam suas próprias versões de histórias semicentenárias e que serão revisitadas repetidas vezes e jamais negarão por completo o cânone que estabeleceu ao longo do tempo.

Erros de percurso são comuns no gênero de super-heróis. Não existe uma grande propriedade intelectual no gênero até agora que caiu em desgraça em um ou outro momento por causa de um gibi terrível, um desenho mal acabado ou um filme picotado. Aqui, o exemplo mais gritante é o Quarteto Fantástico, vitimado por três filmes péssimos em apenas 10 anos, mas cujo filme no MCU tem gerado um hype gigantesco. E, de certa forma, está tudo bem, porque suas melhores versões seguem e seguirão por décadas no imaginário popular global. Saber que todo personagem das páginas um dia chegará às telonas repetidas vezes aplaca a decepção temporária causada por uma adaptação ruim.

Ao menos por enquanto, a Lucasfilm não mostra qualquer intenção de adotar essa abordagem e, justamente por isso, sua substituição quase agressiva do cânone de Star Wars dói tanto em quem cresceu com seus derivados multimídia. A mensagem que o estúdio manda a esses fãs não é necessariamente de que eles são descartáveis, mas que o tempo e esforço dedicado a explorar a franquia de todas as maneiras possíveis já não vale mais num mundo em que a paixão alheia é um mero produto.

Hollywood é cínica com seus clientes e é claro que tanto os vários reboots de herói quanto a reinvenção dos derivados de Star Wars são predominantemente pensadas por seu potencial comercial. Mas enquanto os fãs de supers ganham revisões e recriações de seus momentos favoritos, os da galáxia tão, tão distante precisam presenciar toda história que conheciam ser absolutamente reescrita aos poucos - e esse é um golpe duro difícil de perdoar.

Ao continuar navegando, declaro que estou ciente e concordo com a nossa Política de Privacidade bem como manifesto o consentimento quanto ao fornecimento e tratamento dos dados e cookies para as finalidades ali constantes.