É bem verdade que Spike Lee chegou com mais de 40 minutos de atraso ao compromisso que tinha com o público carioca, nesta sexta-feira (11), na Rio Innovation Week. Mas, como ele próprio fez questão de frisar, foi por um bom motivo. Atração aguardada do último dia do evento no Pier Mauá, na região central da cidade, o cineasta americano espremeu a agenda para incluir uma visita à comunidade Santa Marta, em Botafogo. Foi lá que ele filmou em 1995 cenas do clipe "They Don't Care About Us", de Michael Jackson.
O vídeo foi exibido no telão antes de sua entrada, mas não foi o único ponto de conexão com o Brasil que o cineasta escolheu demonstrar. Ele entrou em cena vestindo a camisa da seleção, fez reverência a Gal Costa e criticou o atual presidente da República, Jair Bolsonaro.
Enquanto o público ainda terminava de se acomodar no auditório lotado, a playlist escolhida pelo convidado trazia canções na voz de Gal, que nos deixou no último dia 9. Lee pediu um minuto de silêncio pela cantora antes de saudar o público e comemorar a eleição de Luís Inácio Lula da Silva, que ele comparou a uma vitória do amor sobre o ódio. "Bolsonaro e [o ex-presidente dos EUA Donald] Trump são gângsteres, eles e seus amigos", disparou o americano, que foi bastante aplaudido.
Esse não foi o único momento de conversa sobre política. A certa altura, Lee discorreu sobre o fato de a tecnologia ser uma ferramenta capciosa e novamente citou Bolsonaro e Trump. Ele lembrou que, no início da pandemia, os dois tratavam a Covid-19 como uma farsa.
"Houve mais de um milhão de mortes por Covid nos Estados Unidos, e muitas delas poderiam ter sido salvas se não tivessem acreditado nessas mentiras", afirmou.
O cineasta também mencionou as muitas notícias falsas sobre uma suposta fraude nas eleições nos dois países e citou o episódio da invasão ao Capitólio americano, em janeiro de 2021, por apoiadores de Trump que decidiram ignorar o resultado das urnas.
"Graças a Deus que isso não aconteceu aqui no Brasil. Eu não estava aqui [durante as eleições], mas estava ajoelhado, rezando. Não deixem que o aconteceu lá aconteça aqui", pediu.
Cineasta falou sobre criatividade e sua filmografia
No painel "O Poder da Criatividade", mediado pelo DJ e cineasta Dodô Azevedo, o realizador americano também falou sobre trabalhos marcantes de sua carreira, seu processo criativo e as especificidades do ofício de cineasta. "O que eu tento ensinar aos meus alunos é: trabalhe duro. O sucesso da noite para o dia é uma mentira", disse ele, que também é professor titular da NYU Grad Film.
A questão racial, sempre um ponto central em sua filmografia, também entrou na pauta. Obras como Faça a Coisa Certa, de 1989, e Malcolm X, que completa 30 anos este mês, seguem atuais quando o assunto é racismo.
"Sempre me perguntam quem fez a coisa certa no fim de Faça a Coisa Certa. A minha resposta é: você decide. O filme termina com citações de Martin Luther King e Malcolm X. Algumas pessoas disseram que eu estava tentando fazer o público escolher entre as duas visões da violência. Para King, não se deve ser violento. Para Malcolm X, [violência] é autodefesa. Como eu vejo, não é um nem outro, mas uma combinação dos dois", ponderou.
Lee também falou como o trauma provocado por centenas de anos de escravidão em países como os EUA e o Brasil muitas vezes acaba sendo canalizada para a criação artística ("De onde vem o blues?"), mas também exaltou a herança cultural dos ancestrais africanos.
"Nós viemos do mesmo lugar, a África, o berço da civilização. Foram os negros que construíram as pirâmides. Até hoje os cientistas não conseguem entender como elas foram construídas. Mas foram nossos ancestrais", analisou.
Antes de encerrar o painel, que teve plateia até do lado de fora do auditório, assistindo ao encontro pelo telão, Lee resolveu contar a história do vídeo de "They Don't Care About Us". Segundo o cineasta, quando Michael Jackson ligou, ele desligou o telefone algumas vezes, pensando que era um trote.
Quando finalmente conseguiram conversar, o cantor viajou até Nova York, apresentou as músicas do álbum "History" e lhe pediu que escolhesse uma canção. Lee, então, optou por... "Stranger in Moscow". "Ele disse: 'Não, não é essa que você quer'", contou Lee, aos risos. "Naquela época, tinha um álbum de sucesso do Paul Simon, 'The Rhythm of the Saints', com participação do Olodum. Falei: 'Escuta essa percussão. Temos que ir para o Brasil'."
E foi assim que nasceu a ideia do clipe - que Michael gostava de chamar de curta-metragem - gravado no Rio e na Bahia. "É por isso que eu peço desculpas por chegar atrasado. Mas eu tinha que visitar [a estátua de] Michael no Santa Marta", explicou Lee, que causou alvoroço na saída e foi atencioso com os fãs, distribuindo selfies e autógrafos.