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Primo Basílio

Apesar de Daniel Filho, adaptação ainda se beneficia da escrita de Eça de Queiroz

09.08.2007, às 17H00.
Atualizada em 21.09.2014, ÀS 13H27
A noção por trás do melodrama é a dos amores maiores que a vida, das façanhas pela conquista, da busca desenfreada pela felicidade e, acima de tudo, pelo afeto. Nessa busca, os personagens do melodrama se dispõem a enfrentar doenças, fenômenos da natureza, rivais, inimigos e até mesmo a morte - tudo para atingir o que, na própria concepção do subgênero, é inatingível. Vide os anti-heróis derrotados de Douglas Sirk

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, referência do melodrama no cinema, ou ainda de Rainer Fassbinder e - por que não? - Pedro Almodóvar .

Primo Basílio, nova empreitada de Daniel Filho nos cinemas, ambiciona ser um exemplar típico dessa "escola sentimental". Só que, em vez de acreditar nos cânones que a regem, o diretor preferiu potencializar na tela o que é já exagerado e exacerbado. Não bastou a Daniel Filho realizar um melodrama. Ele precisava demonstrar ao espectador o que está tentando fazer e não deixar qualquer tipo de dúvida sobre suas intenções. Se existe dor em alguma cena, a música entra de forma ensurdecedora para catalisar essa mesma dor; se há um flagrante de algum delito ou atitude suspeita, um primeiro plano faz questão de enquadrar o rosto do meliante (junto à música, é claro); se a aguardada noite de amor dos pombinhos acontece, não basta que eles se amem propriamente: é preciso incidir mais luz sobre seus corpos, colocar umas frutas em close e obviamente insinuar através do fogo que a coisa ali está fervendo.

É esta a fórmula maior do diretor em Primo Basílio: fazer do melodrama mais do que ele é. Hora alguma há tentativa de relativizá-lo ou mesmo de referenciá-lo simplesmente (como muito bem fez Todd Haynes em Longe do Paraíso, ou então Nick Cassavetes no belíssimo Diário de Uma Paixão). Importa mais ao diretor colocar em cena a sua descrença na crença do público - como se fosse a este impossível acreditar no amor exposto na tela. E para forçar a crença, utilizam-se todos os artifícios mais grosseiros. É um mecanismo - para ficar no lugar-comum - típico da televisão. O telespectador não se coloca de frente à tela pequena para ter a mente embaralhada. Quanto mais direto ao ponto e quanto menos sutileza, melhor, porque não há tempo nem disposição de se ficar decifrando códigos de linguagem. OK, como negar isto à TV, que, por definição, é espaço maior de entretenimento e pouca reflexão? Mas a partir do momento em que essa linguagem chega ao cinema, a partir do instante em que ela se torna saída fácil para a mediocridade num universo em que o medíocre deveria ser ignorado ao máximo, aí a coisa muda de figura.

Surpreendentemente, Primo Basílio não é de todo destituído de interesses. Pelo contrário: em vista dos filmes anteriores de Daniel Filho (em que o ponto mais baixo foi Muito Gelo e Dois Dedos D'Água), Primo Basílio torna-se a sua obra-prima. Nenhum outro de seus trabalhos tinha tamanha sofisticação como agora - sofisticação de produção, de tratamento de elenco, de roteiro. Mas o maior achado do filme nem é responsabilidade do diretor. Está na história de Eça de Queiroz que originou o filme.

O romance O Primo Basílio é uma das narrativas mais fortes da literatura portuguesa - em tudo que ela tem de ironia, crueldade, sadismo e crítica à burguesia de classe média. Ainda que tenha modificado alguns elementos da trama original - o maior deles é a mudança de ambientação, saindo da Lisboa do século XIX para a São Paulo de 1958 -, o roteiro de Euclydes Marinho mantém certa essência do romance, em especial na relação invertida entre patroa e empregada que, a certa altura, toma todo o espaço na trama (e que remete, guardadas as proporções, ao antológico O Criado, de Joseph Losey).

A força da criação de Eça consegue fazer com que Primo Basílio ganhe certa sobrevida. O longa poderia se tornar um pequeno marco do melodrama se de fato acreditasse em seu próprio universo e parasse de tentar, a todo instante, esfregar nos olhos do espectador mais do que está realmente acontecendo na tela. Na melhor das hipóteses, o filme serve como porta de entrada (ou de recordações) da literatura de Eça de Queiroz, esta sim uma obra-prima que sabia tirar do melodrama o que ele possui de mais intenso e verdadeiramente romântico e trágico.

Marcelo Miranda é editor do site cinequanon.art.br
 

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