O Fim e os Meios | Diretor Murilo Salles apresenta thriller político no festival de Gramado
Cintia Rosa é uma das favoritas ao Kikito de Melhor Atriz
Depois de três dias de suor, sopas de capeletti e discussões sobre novas identidades possíveis (e viáveis) para o cinema brasileiro, o 43º Festival de Gramado deixou visível uma tendência em lapidação para a produção audiovisual contemporânea do país: a reflexão sobre o legado, os espólios e os escombros da Era Lula. Esse movimento ficou claro a partir da noite de domingo, quando o Palácio dos Festivais, no peito da Serra Gaúcha, vibrou com o thriller político O Fim e os Meios, do cineasta carioca Murilo Salles. Brasília é um dos cenários para a reflexão sobre a atemporalidade da corrupção e de seus efeitos na subjetividade de figuras satélites ao Poder, em especial uma jornalista, um assessor de marketing e um líder de campanha. Mas este conceito de atemporal deve ser relativizado nesse filme que esbanja sensualidade – aliás, é a edição de Gramado mais sexy em muitos anos, vide os títulos de longa metragem já exibidos até aqui, como Introdução à Música do Sangue. Murilo esculpe uma análise sobre os sintomas dos atos corruptos com um pé nas tradições e outro na juventude. Uma juventude que veio a reboque da eleição de Lula em 2002 e cresceu à sombra fria do Mensalão. Mas, para isso, em seu roteiro primoroso (já laureado com o troféu Redentor no Festival do Rio de 2014), o longa não precisa dar nome aos bois, nem aos políticos. Ele precisa só de desejo, coisa que a atriz Cintia Rosa encarna à perfeição, numa atuação digna de Kikito.
“Este é um filme para colocar uma mosca na nossa sopa”, instigou Murilo no início da projeção. “A corrupção é uma endemia”.
Num ritmo de tensão crescente, na margem do trágico, O Fim e os Meios é o que se chama de filme de gênero: é um suspense sobre formas de governança. É um parente distante de um filão que ganhou corpo no cinema na Europa dos anos 1960 quando o diretor franco-grego Costa-Gavras lançou Z (1969), sendo premiado em Cannes e no Oscar. É um formato onde o perigo vem de estratégias de manutenção de uma ordem de comando. Mas como Murilo, um realizador de 64 anos premiado por longas como Nunca Fomos Tão Felizes (1984) e Nome Próprio (2007), não se rende a cartilha, seu mergulho na selva do DF não se rende a códigos estabelecidos de filão. É, portanto, um Costa-Gavras on the rocks, mais pop.
“Como fazer um filme sobre política? Partindo para o ser humano. Essa questão do thriller talvez venha de uma certa percepção minha de paranoia. Mas ela vem mais pelo fato de eu ser parte de uma geração que admirava muito um cineasta, hoje esquecido, que falava da política com um viés de suspense: o italiano Francesco Rosi, de filmes como As Mãos Sobre A Cidade e O Bandido Giuliano. Meu desafio é partir dessas referências para construir uma pegada minha”, respondeu (durante a coletiva de imprensa) Murilo, que tira de Cintia Rosauma interpretação ressaqueada e tensa, sem conexões com perfis de heroína.
Sua personagem, Cris, abre o filme grávida de um publicitário, Paulo Henrique (Pedro Bício, um mestre na composição de figuras ambíguas, que explodem no trâmite da fragilidade à ira). Paulo acaba de ser chamado para dirigir a publicidade de um senador (Emiliano Queiroz). Sua adesão ao convite de trabalho se dá pelo assédio do dinheiro e pela chance de começar uma vida com Cris e a filha que ambos geraram. Mas uma vez em no coração da República, o casal vai se perdendo numa ciranda que, a princípio, é girada pelas eleições e, depois, passa a ser movida pelo instinto carnal. “Não há heroificação neste filme. Tento suspender o desejo da resposta que Hollywood institucionalizou. Não há heróis nem vilões. Há pessoas comuns, normais”, explica o cineasta, que confiou a direção de arte a Pedro Paulo de Souza, num trabalho de cenografia cuidadoso, com um mínimo de elementos traduzindo o máximo da inquietação dos protagonistas.
É aí que a figura de Hugo, assessor do senador interpretado com uma maestria inquestionável por Marco Ricca, afasta O Fim e os Meios da moral e da cívica e leva o filmaço de Murilo para instâncias mais profundas, sem racionalização. Ricca, na pele de Hugo, é a encarnação de um conceito de coronelismo que vem da Sociologia. Ele é o capataz cordial dos coronéis do Nordeste, que assopra antes de bater, que seduz antes de devorar. É o predador do Brasil que se desenha Planalto adentro. A torrente sexual que ele, com sua retidão, desperta em Cris leva os personagens a linhas tortas e mostra que pode existir algo de não verbal no jogo político. Algo que passa pelo corpo, pelos nervos, pela fome. “Meu tema é o Brasil”, diz Murilo, que lança O Fim e os Meios em novembro.
Não há ainda favoritismos claros na briga pelo prêmio de melhor filme de Gramado 2015, fora os elogios rasgados ao desempenho de Cintia Rosa e à montagem de Karen Harley em O Fim e Os Meios, e fora a reverência prestada ao desempenho de Ney Latorraca em Introdução à Música do Sangue. Mas, na noite desta segunda, a tristeza felliniana de O Último Cine Drive-In, de Iberê Carvalho, pode fazer diferença sobretudo pela presença de uma força da natureza chamada Othon Bastos à frente do elenco. Veremos por que rota Gramado vai seguir até o desfecho do festival, neste sábado.