Na manhã de 7 de setembro deste ano, Toronto estava brindando todo o público do TIFF, o festival internacional de cinema da cidade, com um lembrete de que o verão estava se encaminhando para o fim. Um vento gelado cortava as ruas com os grandes prédios que ocupam a área de Downtown, especialmente a King Street, a principal rua onde ocorre o festival. Mas nem o vento frio e gelado do Canadá foi capaz de tirar os sorrisos dos rosto de Caio e Fabiano Gullane, produtores de Os Enforcados, quando nos encontramos no hotel onde ficava o centro de imprensa do festival.
A razão era óbvia: o filme havia estreado no festival no dia anterior, em uma sala para quase 400 pessoas e com poucos lugares vazios. O tamanho da tela e o sistema chamaram a atenção da dupla de produtores que ainda não havia assistido ao filme dessa forma. "Uma tela daquele tamanho, um som explodindo e a reação das pessoas com a história… assistimos ao filme em salas pequenas, para testes, mas nada dessa forma", contou Fabiano. "Estar numa seleção com [Pedro] Almodóvar, Waltinho [Walter Salles] e outros grandes diretores, com uma grande audiência internacional e o público respondendo ao filme, rindo, tenso e aplausos no final, foi maravilhoso", acrescentou.
Os Gullane estavam em Toronto para a première mundial de Os Enforcados - ou como diz o título internacional, Carnival is Over (O Carnaval Acabou, em tradução livre) -, novo filme de Fernando Coimbra e estrelado por Leandra Leal e Irandhir Santos. A dupla protagonista vive respectivamente Regina e Valério, um casal que tenta se dar bem com um golpe para assumir os negócios do tio dele no Jogo do Bicho. Valério deveria ter herdado os negócios do pai, mas o patriarca foi morto por Linduarte (Stepan Nercessian), que assumiu a contravenção e o controle da escola de samba que era da família.
O filme, que também passará pelo Festival Internacional de Cinema de Vancouver antes de estrear em solo brasileiro no Festival do Rio, conta com a feliz coincidência de chegar em um momento em que o Jogo do Bicho virou hit com o sucesso de Vale o Escrito, série documental produzida pelo Globolay, e que os Gullane esperam poder ajudar no caminho do filme nas salas.
"Nós e o Fernando [Coimbra] começamos a trabalhar nessa ideia do Jogo do Bicho, da máfia, família que mata família, antes de virar moda. E agora, dezenas de outros projetos sobre o jogo estão começando a ser desenvolvidos e o nosso já está aí em festivais e pronto para ser lançado", comemorou Fabiano. "O legal dessas organizações que a gente vê pelo mundo, por exemplo, você vê a máfia italiana, é tudo pelo vínculo sanguíneo. As do Brasil, como o PCC, Comando Vermelho, eles não têm. No Brasil, a instituição que passa pelo crime, que tem o vínculo sanguíneo e essa história universal de máfia é o Jogo do Bicho. Então uma comparação entre a nossa história e as histórias de máfia é bem pertinente", completou Caio.
Os Enforcados traz um cenário muito carioca e brasileiro, envolvendo uma contravenção muito específica do país e cenários conhecidos internacionalmente, seja o Rio de Janeiro ou mesmo o carnaval. Essa identidade e, principalmente, a reflexão sobre o Estado e a sociedade brasileira/carioca estão na fundação do filme. "Tanto com Os Enforcados, quanto com Motel Destino [filme de Karim Aïnouz lançado em Cannes], por mais que eles tenham cinematografias muito particulares, nunca deixam de ter uma mensagem central sobre o nosso país, uma releitura de relevância sobre o que a gente vive lá. São dois projetos que levam o Brasil para além de falar das suas mazelas. No DNA da Gullane, queremos criar um cinema original para que o mundo possa enxergar o nosso cinema com uma assinatura", afirmou Caio. "Se o público internacional reagiu de forma tão positiva, a expectativa para a abertura do Festival do Rio, fica muito maior”, já que o filme abraça tanto essa identidade", acrescentou Fabiano
Estar no Festival de Toronto, talvez um dos três mais importantes do mundo, representa muito, tanto para Os Enforcados e a produtora, quanto para o Brasil e o cenário político que viveu nos últimos anos. "É um fato que o Brasil ficou quatro anos parado. Ficamos quatro ou cinco anos em stand-by e agora as políticas públicas voltaram, o cinema brasileiro vai voltar com muita força. O mundo estava com saudade do nosso cinema, das nossas histórias. O mundo olhava para a gente enviesado, pensando: 'Para que eu vou convidar o Brasil nesse momento?'", apontou Fabiano Gullane.
Os produtores, acostumados a lançar grandes obras do cinema nacional como os premiados Bicho de Sete Cabeças, O Ano que Meus Pais Saíram de Férias, Que Horas Ela Volta?, O Lobo Atrás da Porta e sucessos como Bingo: O Rei das Manhãs, exaltaram a indústria nacional, seus profissionais e a resiliência dos últimos anos. "Não foi um momento fácil, mas isso não tem nada a ver com a indústria e o talento brasileiro. A gente só consegue fazer acontecer, com os meios de produção em funcionamento", disse Fabiano, que completou afirmando que os resultados da retomada já são perceptíveis. "O ano de 2023 foi um ano de reconstrução e 2024 celebra o retorno do Brasil como um player importante do cenário independente mundial, não só nos festivais, mas também nas vendas e na distribuição. O filme do Karim [Motel Destino] está sendo vendido para o mundo inteiro, o do Walter [Salles, de Ainda Estou Aqui] também. Os Enforcados também será. Temos uma animação de A Arca de Noé, baseada nas canções do Vinícius de Moraes, que já foi vendido para 70 países, foi lançado em 40 e chega ao Brasil em novembro. Voltamos após esses quatro anos com muita energia e vontade de retomar."
Os dois acreditam que é um momento de esperança e de acreditar no cinema brasileiro, incluindo aí os jovens que querem começar uma carreira na sétima arte. "Pra nós é um caminho sem volta, com as políticas de incentivo à cultura que foram criadas há 30 anos e agora, depois desses quatro anos, estão voltando com força, tudo isso criou nos profissionais de cinema, dos mais diversos e uma esperança para os jovens que vêm, de que existe e que dá para fazer cinema no Brasil", afirmou Caio Gullane.
"Assim como o Cinema Novo abriu a porta e nos fez sonhar, eu acho que os jovens e o cinema brasileiro, hoje, têm como sonhar. Temos dificuldade de sonhar por sermos um país subdesenvolvido, com muita corrupção e, por isso, trazemos essa realidade para nossos filmes, já que não adianta vivermos numa bolha. E o que percebemos com esses projetos, sendo selecionados para os maiores festivais do mundo, conseguindo vender, é ter uma certeza do nosso caminho. A gente sempre teve que enfrentar muito por essas questões do nosso país, mas o cinema brasileiro tem muito a sonhar e buscar resultado nessas oportunidades", finalizou o produtor.