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Entrevista

Omelete entrevista: O diretor de Cinema, aspirinas e urubus

Omelete entrevista: O diretor de Cinema, aspirinas e urubus

10.11.2005, às 00H00.
Atualizada em 03.11.2016, ÀS 04H04
Cinema, aspirinas e urubus
Brasil, 2005
Drama - 99 min

Direção: Marcelo Gomes
Roteiro: Karim Ainouz, Paulo Caldas, Marcelo Gomes

Elenco: Peter Kenath, João Miguel, Hermila Guedes, Mano Fialho



Marcelo Gomes

Marcelo Gomes dirige
Peter Kenath e João Miguel

O tour de Cinema, aspirinas e urubus segue em frente. Depois de ser ovacionado em Cannes, Rio de Janeiro e levar o prêmio de Melhor Filme da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo (pela primeira vez, dado a um longa brasileiro), passa pelo Nordeste, Goiânia, Manaus e vai até Los Angeles, onde será exibido num festival do American Film Institute. Foi assim, saídos de vôos distintos, que o diretor Marcelo Gomes e os atores João Miguel e Peter Ketnath se reuniram em São Paulo nesta terça-feira para a pré-estréia do filme.

O Omelete aproveitou para conversar com eles. O soteropolitano João Miguel fica com os olhos marejados quando fala de seu personagem. De gestual palavroso, como se falasse com as mãos, o pernambucano Gomes diz que foram justamente os olhos do ator que o convenceram a escalá-lo. E Peter Ketnath, bem, Peter é alemão. Mas abre sorrisos que demonstram um comecinho de brasilidade.

A seguir, a entrevista com o diretor. Clique aqui para conferir o bate-papo com os dois atores.

Vamos do começo. A história trata do encontro entre um sertanejo, Ranulpho, que está louco para trocar a dureza da Paraíba pelo Sudeste, com um alemão, Johann, que saiu da Alemanhã em 1942 para exibir filmes de propaganda da Bayer e vender aspirinas no sertão nordestino. O filme abre com uma luz estourada, branca, que clareia aos poucos para mostrar o caminhão de Johann. É como se o cara abrisse os olhos no sertão pela primeira vez. O que isso representa?

Eu queria construir o sertão da minha memória afetiva, o sertão que eu lembro das minhas viagens desde pequeno, que me causavam uma impressão muito grande, aqueles silêncios espaciais e aquela luz que parece que vai furar as pálpebras. Eu imaginei que esse alemão, vindo de um clima temperado, chegando no sertão pela primeira vez, vai ter esse problema de fotofobia, vai ver o sertão superexposto. Mas você tem o sertanejo que está fugindo da miséria, do sertão que é quente, árido e seco, ele só consegue ver isso. Então é a visão desses dois personagens que impregna a paisagem. E é essa luz branca que passamos três meses no laboratório pesquisando. Foi uma longa pesquisa até chegar a ela.

Ouvi que você iria despedir Mauro Pinheiro Jr., diretor de fotografia, se ele filmasse o céu azul.

[Risos] É porque se eu tivesse aquele céu azul, a primeira pergunta é: porque aquele personagem quer fugir do sertão? E porque esse outro vê o sertão com essa luminosidade de doer os olhos? O céu iria impregnar o sertão que, na verdade, eu queria que viesse de dentro dos personagens. E nós construímos esse sertão, que é ficcional e que interessa dramaticamente. A gente só filmava de 9h a 3h da tarde, só no horário sem nuvem passando, sol a pino, como se fosse derreter os dois, que transformam o caminhão num casulo, numa proteção.

O filme é inspirado nos relatos de viagem de seu tio-avô, Ranulpho Gomes, que morreu faz dois meses. Quanto há dessas histórias no roteiro?

Ele me contava as histórias dessas viagens. Quando ele deixou o sertão da Paraíba ele conheceu um alemão que exibia filmes e vendia aspirinas pelo Brasil inteiro, depois veio a guerra e a fábrica da Bayer foi fechada. Isso é verdade. O resto é construção dos personagens que eu desenvolvi, porque eu não queria criar o estereótipo do sertanejo "bom selvagem", bonzinho. O filme todo são encontros simbólicos, encontros com a morte, o amor, com o desejo de encontrar a felicidade.

Ele chegou a ver o filme pronto?

Não. Ele estava com problema de memória muito grande nos últimos anos, ele estava quase insano. Mas eu estava organizando a exibição pra ele quando faleceu. Talvez ele nem conseguisse entender o filme, já estava misturando as histórias...

A estrutura do filme é muito similar à do Cidade Baixa: um cinema de pessoas, econômico em eventos, as coisas acontecem mais no nível das sensações, na cabeça dos personagens. Qual a importância do Karim Aïnouz - que colaborou nos dois filmes - na criação do roteiro?

O Karim pegava o roteiro e metralhava inteiro. É uma pessoa que me exigia muito do roteiro o tempo todo, questionava versão após versão, do desenvolvimento dos personagens, da gênese dos personagens, do percurso dos personagens. Acho que ele ajudou muito, tanto o Sérgio [Machado, diretor de Cidade Baixa] quanto a mim, a desvendar, a chegar na alma desses personagens.

Você colaborou no roteiro do Madame Satã, filme de estréia de Aïnouz, não?

O Sérgio também. A gente trabalhava muito o diálogo, aquele que vem a partir dos personagens, não do roteirista, sabe? No Cinema, aspirinas..., na última versão que eu fiz para filmar, escrevi cinco páginas sobre a vida de cada personagem, onde nasceram, quem são, onde moraram, tudo. E a partir daí eu conhecia tanto eles que, quando acontecia a cena, eles é que me diziam o que iam falar, não eu que construía o diálogo. Nesse momento, quando acontece essa magia, aí é lindo. Mas é difícil chegar nisso. Precisa de anos de trabalho no roteiro.

Então é uma panela: você, Sérgio, Karim...

Eu trabalho também com o Paulo Caldas, conheço o Lírio [Ferreira, co-diretor com Caldas de Baile perfumado], conheço o Cláudio [Assis], conheço o Beto [Brant]. Eu acho que tem uma galera aí que quer fazer cinema autoral, e eu tive muita sorte de ser amigo e trabalhar com eles. É um pessoal que quer investigar caminhos de contar histórias, de desenvolver a linguagem cinematográfica, de ter uma pessoalidade. Adoro fazer parte dessa gangue.

A cena em que o Ranulpho projeta o filme na palma da mão tem essa conotação, do pessoal do Nordeste querendo entrar no mercado de cinema dominado por Rio e São Paulo?

Na verdade, quando eu construí aquela cena, foi pensando na simbologia do migrante dizendo "eu quero chegar lá", mas não chegar lá de uma forma capitalista, mas construir meu caminho, meu sonho. Não pensei nesse duelo de Rio e SP com o cinema fora do eixo. O que eu acho é que o Brasil é um país plural, que tem culturas plurais, tradições plurais, formação étnica plural, então o cinema brasileiro tem que ser assim, feito no Amazonas, em Roraima, no Rio Grande do Sul, em Goiás... Acho que tem que acontecer a descentralização.

Tem outro trecho que fala também de cinema, quando a menina da carona assiste ao comercial de aspirina na projeção montada pelo Johann. Todo mundo se encanta, mas ela acha aquela encenação triste. Você acha o cinema industrial, de espetáculo, triste?

Eu acho. É uma crítica exatamente a isso. Vender sabão em pó é uma coisa muito sem alma. Fazer cinema de sabão em pó não dá...

Você tinha um cineclube em Recife?

Sim, foi ali onde me formei, onde vi todo o Cinema Novo, Nouvelle Vague francesa, cinema dos anos 70 alemão, cinema independente europeu, independentes americanos. A gente passava de Zé do Caixão a Bela Lugosi, Júlio Bressane, tudo. Hoje encontro gente que diz ter se formado no cinema da gente, e hoje isso não existe mais.

Essa formação conta muito no filme? Tem alguma inspiração?

Não gosto de falar em inspiração porque se for começar a investigar quem me inspirou a fazer o filme, vou começar a dar uma lógica à minha criação. E criação tem que vir do coração. Acho que meu filme é honesto e humano, porque vem do coração. A humanidade me interessa.

No último documentário do Eduardo Coutinho, O fim e o princípio, ele entrevista um sertanejo que diz assim: "O cabra que conta tudo o que sabe fica abestalhado". Você acha que o Ranulpho é um pouco assim, reservado, desconfiado?

Eu acho que, no meu filme, você conhece os personagens a partir dos silêncios deles. Os dois atores são muito expressivos pelos silêncios. Parece que eles só abrem a boca quando eles têm certeza do que vão dizer - fico muito feliz. E a gente tirou muito diálogo na montagem. Sabe aquela cena em que entra a menina no carro, pra quem eles dão carona? Aquela cena tinha o dobro de diálogos, mas não precisava. Os olhares deles, aquele balé coreografado, já estava dizendo tudo.

Como você selecionou o elenco? Como conheceu Peter?

Foi através de contatos. Eu conheci produtores, distribuidores na Alemanha, atores brasileiros que conheciam atores alemães, atores alemães que conheciam outros atores... E a partir dessa pesquisa encontrei o Peter, que fala português porque tem uma mulher baiana. Mandei o roteiro, ele adorou, escreveu uma coisa linda sobre o roteiro. Uma compreensão do filme muito bonita. O João eu tinha visto [na encenação paulistana do monólogo] no Bispo do Rosário, fiquei encantado com o detalhismo, com a construção do personagem. Ele fez um teste, liguei pra ele dizendo que tinha sido selecionado. Ele perguntou o porquê e eu disse: "por esse par de olhos, são esses olhos que eu preciso no meu filme".

João Miguel trabalha há quinze anos com o personagem do palhaço, em hospitais, praças... Você acha que o Ranulpho tem um pouco disso, da coisa do clown, de quem ri pra não chorar?

Totalmente, totalmente. Chora pra não rir e ri pra não chorar. Ele é seco, ele é duro que nem a terra, mas tem um sarcasmo, um humor que a própria região deu pra ele, meu tio-avô era a mesma coisa. Ele falava: "Se eu fosse presidente do Brasil, da Bahia pra cima não morava ninguém. Lugar desgraçado pra morar que é o Nordeste...".

Tem uma cena forte no filme que é quando o Johann tenta jogar fora o passaporte e encontra a cobra. A câmera então fecha num cacto todo espinhoso, de um jeito que não havia aparecido antes. O filme fala muito da agressividade do espaço, dessa dificuldade que as pessoas têm em se achar num lugar, de ter uma identidade...

O Johann está no sertão, tem aquela curiosidade pelo sertão, mas a gente sente que ele é um peixe fora dágua o tempo inteiro, porque ele tem um drama muito forte, que é carregar o passado dolorido do país dele nas costas e toda a memória daquele mundo que ele deixou. E depois vem aquela região que é seca, atroz, e ainda mostra a cobra e o cacto pra ele: é a morte e a dureza.

E tem a questão dos urubus, que aparecem no final do filme mas você tem a sensação de que eles já estavam lá, pairando. Quem são os urubus?

Primeiro, eles representam muito aquela região, a miséria, a fome, a pobreza. É o urubu comendo a carniça daquele mundo. Naquele momento do filme o urubu representa as mazelas que pairam sobre as nossas vidas, sejam das pessoas que estão indo de trem pra Amazônia ou de trem para o campo de concentração. O urubu são os generais, são a guerra.

Em agosto o diretor do Festival de Veneza, Marco Muller, justificou a ausência de brasileiros na seleção dizendo que "os filmes brasileiros são brasileiros demais, falam de problemas que o estrangeiro não entende". Você concorda com isso?

Acho completamente leviano. O que é cinema brasileiro? Zé do Caixão, Cidade de Deus ou Xuxa e os duendes? Ficaram inventando essa coisa de "cinema brasileiro". E agora inventaram que eu faço "cinema pernambucano". O que é isso? Eu sou um pernambucano que faz cinema, e a cultura de lá está muito arraigada no meu cinema, porque é onde eu me formei culturalmente. Agora eu faço um filme que se passa no sertão da Paraíba, que o sertanejo quando assiste fala "nossa, ESSE é o verdadeiro sertão!", e de repente o filme vai pra Cannes, é convidado pra 64 festivais e eu estou falando da minha aldeia. Quer coisa mais regional que isso? Como é que o Marco Muller vai explicar?

Mas a história de Cinema, aspirinas e urubus tem um apelo universal...

Acho que quanto mais você fala da sua aldeia mais universal você é, né?

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