Omelete entrevista: Karim Aïnouz, diretor de O céu de Suely - Parte 2
Omelete entrevista: Karim Aïnouz, diretor de O céu de Suely - Parte 2
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Leia aqui a parte I desta entrevista
Você fala constantemente de ação não-dramática, de uma narrativa sem muitas relações de causa e efeito. O crítico e roteirista Felipe Bragança, que trabalhou em O Céu de Suely, te citou na Contracampo dizendo que você odeia trama.
Cara, minha cabeça funciona de um jeito diferente, eu não consigo pensar numa narrativa assim. Eu não sei nem contar piada.
À medida que você foi enxugando a dramaticidade do roteiro, na hora de montar você tinha liberdade de mudar planos de lugar?
Curiosamente, nesse filme eu nunca mais li o roteiro depois que terminamos de rodar. Nunca reli. E na montagem tinha um grande problema: eu filmei muito e tinha liberdade demais de mudar as coisas de lugar. Como não existia relação direta de causalidade entre as cenas - existia, sei lá, três pontos fixos de causalidade, como o desaparecimento do marido dela ou o momento em que ela decide se rifar - muitas dessas cenas poderiam ir em qualquer lugar. Era como se aquele filme fosse um corpo aberto, como se fosse um Lego. E chegou um momento em que ficou complicado para mim. A montagem foi muito prazerosa, mas muito dolorosa. Até hoje você pode ver o filme e dizer essa cena ficaria melhor naquele outro ponto, e tenho certeza de que tem gente que pensa assim.
É uma coisa eisensteiniana, o filme nasce de verdade é na sala de montagem?
Acho que o filme renasce a cada momento. Ele renasceu na mixagem - não mexemos na imagem, mas havia vários elementos de som que transformaram o filme. Como ele tem pouca ação, você consegue tornar uma cena mais ou menos dinâmica com o ruído que há offscreen, por exemplo. Você só entende o filme mesmo quando ele está pronto. Claro, há filmes que têm um roteiro tão sólido, com causalidades tão precisas, que isso não é possível. Depende de um processo que se pretende assim desde o começo.
Você trabalha muito com instinto. E eu não sabia, até conversar com a Hermila - o papel de Suely antes era da Georgina. Como você conseguiu mudar de protagonista, assim, já no set?
Não é fácil ter essa liberdade. Na época do Madame Satã nós trabalhamos com um negócio que se chama completion bond. É como um seguro, nunca entendi direito. É uma empresa de Los Angeles, você tem que mandar relatórios todos os dias, com a ordem do dia, dizendo quantas páginas e que cenas você filmou, etc. E isso já caracterizava um jeito de fazer cinema. Em Suely eu não tive completion bond - e também nunca entendi, porque no fim esse filme tem mais participação internacional [na produção] do que o outro. E também não tinha produtor no set, não tinha distribuidor - porque eu nunca quis que o filme começasse com um distribuidor. Fui manobrando. Filmei em Iguatu também por causa disso, para me isolar. Eu consegui formar esse processo, que também é um processo do caos. Eu tinha um desejo de que esse filme fosse intuitivo, de descoberta, diferente do cinema que é um processo de execução.
Você teve liberdade, mas ao mesmo tempo teve um background grande, produção da Videofilmes, estrangeiros, etc. Isso faz diferença na hora de ter mais rolo de filme para queimar?
Não, é diferente. Parece um background foda no sentido de suporte financeiro, mas é o contrário. Eu tinha um orçamento de filmagem que eu não podia ultrapassar. Isso foi combinado com o meu produtor: 1,5 milhão de reais, incluindo tudo, deslocamento, etc. Eu comecei a pré-produção e terminei a filmagem com 1,5 milhão, que não é muito dinheiro. No Madame Satã houve um problema: o negativo que eu usei, era três takes no máximo, não podia desperdiçar. Todo dia eu brigava com o Maurício [Andrade Ramos] da Videofilmes por mais negativo, fazia chantagem, dizia que ia tirar do meu dinheiro, não sei o quê. E nesse filme eu combinei: você me dá 1,5 milhão mas eu não quero ouvir falar de negativo, não quero discutir isso. Se eu filmar 400 latas, 200 latas, não importa. Você fala de suporte, mas é o contrário: nesse esquema de produção a cobrança é maior.
E também, sempre que você está lá filmando, tem um monstrinho aqui no teu ombro dizendo: Porra, é o teu segundo filme.... É uma cobrança. E tinha o monstrinho da matemática. Eu fui tentando diminuir os riscos. Disse: Olha, eu não quero filmar com 2 milhões, quero um e meio. Não é suficiente, mas esse tipo de processo tem um preço - você não pode filmar com essa liberdade sem pagar o preço. Porque o filme pode dar certo e pode não dar certo. Tinha uma matemática ali que era possível. Se eu fizer 100 mil no Brasil, se eu fizer algumas vendas de TV no Brasil, se eu vender cinco territórios no mundo, já empata, fica zero a zero. Não faz fortuna pra ninguém, mas tem um equilíbrio financeiro ali.
Que é uma coisa que você quase nunca vê em filme brasileiro. As pessoas recorrem ao incentivo, torram milhões, sem se comprometer com retorno...
É uma loucura isso. No Estados Unidos é o contrário: quanto você vai crescer? Na hora de conseguir patrocínio a conta é baseada no box office, nas projeções de pré-venda. No Brasil, você participa de um edital da Petrobrás e diz que tem uma projeção de fazer 1 milhão de espectadores. Mas que filmes fazem 1 milhão? São muito poucos. Essa matemática tem que ser feita, mesmo porque esse dinheiro é de incentivo. Não faz sentido ficar torrando dinheiro público. A situação no Brasil é muito privilegiada, você não corre nenhum risco. E isso não existe, não existe. Assim: as pessoas não fazem cinema para dar resultado, mas você precisa ser responsável. Eu acho que deveria haver um teto - todos os filmes podem ser feitos até X mil reais. A partir desse teto você precisa ter outro tipo de financiamento. Pelo menos você garante que alguns filmes - primeiro filme, segundo filme, filme de invenção, de pesquisa - sejam realizados. Os outros, que passam o teto, teriam que se virar. Mas enfim, política cultural, isso é outra discussão.
Eu queria ter começado a primeira parte da entrevista com uma idéia que, depois, achei meio furada. Fazer uma analogia com a parábola do filho pródigo, do cidadão do mundo Karim que retorna para filmar no Ceará natal, e da personagem Hermila que também retorna ao Ceará, saída de São Paulo. Só que o caso dela não tem a ver com a parábola, ela não tem contas a acertar com o passado, ela não pertence àquele lugar.
Não pensei nesse filme assim. Acho que existem traços da parábola dentro da narrativa. O que me interessou de verdade é a circularidade da migração contemporânea. As distâncias são menores, e quando eu viajei pelo sertão vi que tem muita gente que já morou em São Paulo, vão e voltam, como se não tivessem mais casa, como se não pudessem mais ter. Eu queria redesenhar a narrativa não do filho pródigo, mas da pessoa que vai embora. As pessoas se desadequam. É o imigrante contemporâneo que está em curso. E claro que há relações com a minha vida pessoal mesmo, eu, Karim, ali. Saí de casa aos 16 anos, depois volto, saio de novo, entendeu? Isso de não ter casa é uma preocupação da minha vida, o que não faz do filme uma coisa autobiográfica.
Outra coisa que me interessava é como você consegue falar de uma classe que não é a hegemônica, que é a classe subalterna mesmo do Brasil, e trata isso sem falar só da questão econômica. É engraçado: a mulher da Variety, quando viu o filme, não entendia porque a Hermila queria ir embora se estava tudo tão bem ali. É como se você olhasse para determinada camada populacional, que possui os bens materiais, e entendesse que aquilo fosse suficiente. Quando na realidade, porra, não é suficiente. O filme tenta ver onde reside o sonho numa camada social na qual não é muito o caso da pessoa ter sonhos.
Outro processo que deve ter sido duro no set foi separar equipe e elenco. A técnica não entrava em contato com as atrizes, com exceção de maquiador, figurinista, etc, para justamente preservar a atmosfera das personagens. Foi muito difícil conseguir isso? Você acha que dá para empregar o recurso em um outro filme?
Acho que é muito difícil. É difícil que as pessoas entendam o quanto isso pode ser bacana. O problema em O Céu de Suely é que não fez sentido para grande parte da equipe, mesmo do elenco, por diferentes razões. Isso é papel do diretor - acho até que eu poderia ter conduzido, implantado o método, de maneira um pouco mais sutil. É complicado porque existe, eu diria, até uma dinâmica sexual de um set de filmagem. Uma dinâmica erótica mesmo - são pessoas isoladas, longe de tudo, sem seus parceiros habituais, onde tudo pode acontecer, num ambiente artificial. Administrar isso é difícil. Por exemplo, a Hermila namorou o João Miguel e eu não sabia. Não tinha a menor idéia. Há coisas que não estão ao seu alcance. Tenho uma coisa, é meio hippie isso, de fazer com que o cinema seja uma experiência transformadora, coletiva. Quando líamos o roteiro e almoçávamos no domingo na casa que aluguei em Iguatu, não era só para ler o roteiro, mas para almoçarmos juntos.
Trabalhar sempre com a mesma equipe é uma maneira de facilitar essa familiarização?
Estou tentando. Quero depurar isso. Tem muita gente do primeiro filme que está no segundo, as pessoas que tinham dado certo. No segundo agreguei outros - o João [Vieira] Jr., produtor, é um que agora eu quero levar pro resto da vida, entendeu? Se pudesse trabalhar anos a fio com o [diretor de arte] Marquinhos Pedroso eu trabalharia. Os assistentes de direção eu adoro. O problema é que eu cheguei no Brasil, depois de 15 anos sem morar aqui, meio de pára-quedas. Estou tateando ainda. Então leva um tempo para formar essa equipe.
E você não falou em que momento trocou os papéis das atrizes e soube que a Hermila Guedes era a pessoa certa para vivenciar tudo isso.
Eu sempre achei, nunca tive certeza. Desde antes de escrever o roteiro. Quando eu a conheci, ela tinha 17 anos, tinha acabado de fazer um curta. A Hermila tem uma coisa: ela pode ser muito tímida, mas ela pode ser muito solar. O que aconteceu é que eu decidi com a Fátima [Toledo, preparadora de elenco] fazer testes no Brasil inteiro, e depois aqui em São Paulo. Porque não serve muito se a pessoa faz um teste incrível e depois eu não me interessar pelo jeito como a pessoa bebe água, por exemplo. No fim ficaram a Hermila, a Maria Flor e mais duas meninas. Quando acabou o processo com a Fátima, que é uma coisa extenuante, eu achei que a Hermila não tinha a solaridade de que eu precisava. Ali tinha uma coisa melancólica diferente da Hermila da vida real. Aí eu fiquei louco: não só vi que não era ela como vi que não era ninguém. Eu sou super-CDF, pensei que não tinha procurado suficiente. Fiz outra varredura, onde apareceu a Georgina, por acaso, ela tinha ido preencher uma ficha no escritório da Fátima. Na hora dos testes, ela tinha uma solaridade, eu fiquei encantado, e decidi fazer com a Georgina. Mas eu levei elas para lá [Iguatu] e pensei, eu quero ter mais certeza, qualquer coisa eu mudo de idéia.
A Hermila me disse que o clique aconteceu na hora em que ela improvisou uma fala e batia direito com o que estava escrito no roteiro.
Tem uma ponte em Iguatu, sobre o Rio Jaguaribe, que filmamos mas não está no filme. Um dia saí com as meninas, fomos no bar onde elas aparecem dançando, e do lado do bar tem a ponte. Eu consegui embebedá-las e elas saíram correndo para a ponte, onde passavam carros e onde a gente ia filmar. Na paralela havia uma ponte de trem. Lembro que a Hermila parou na frente da ponte de trem e disse: Eu não quero ficar naquela, eu quero ficar nessa ponte. Isso não estava no roteiro, mas é totalmente a personagem. Ela não quer estar ali, quer estar aqui. O jeito como ela falou foi tão luminoso que eu me decidi por ela.






