Sandra Kogut filmou as eleições de 2022. Agora, ela avisa: 2026 pode ser pior.
Omelete conversa com a diretora do documentário No Céu da Pátria Nesse Instante
Créditos da imagem: Sandra Kogut em pré-estreia de No Céu da Pátria Nesse Instante em São Paulo (Divulgação/Patricia Devoraes)
Da safra recente de documentários sobre as sucessivas crises políticas enfrentadas pelo Brasil na última década, No Céu da Pátria Nesse Instante é aquele que mergulha mais fundo nos bastidores do processo eleitoral. Seguindo mesários, ativistas de campanha e outros trabalhadores das eleições ao redor do país, o filme de Sandra Kogut - já em cartaz nos cinemas - registra um processo difícil e contencioso, frequentemente colocado em xeque... mas que resistiu a tudo isso para preservar a democracia.
“Hoje, as ferramentas da desinformação estão ainda mais poderosas”, avisa a cineasta quando o Omelete toca no assunto das próximas eleições presidenciais, que acontecerão em 2026. “Estamos vendo, esses dias mesmo, como ainda tem tanta gente capturada por essa desinformação. Então, na verdade, tudo está mais agudo. Eu não acho que nada disso se resolveu. A gente vê ali no filme um momento histórico muito importante, emblemático, mas que de certa forma é também só um episódio de uma coisa que não parou de crescer”.
A seguir, Kogut fala sobre a feitura de No Céu da Pátria Nesse Instante, a divisão política no Brasil, a relação do seu filme com produções “primas” como Apocalipse nos Trópicos e Alvorada, e as reivindicações dos cineastas brasileiros diante da era do streaming. Confira!
OMELETE: Oi Sandra, prazer, eu sou o Caio. Parabéns pelo filme!
KOGUT: Obrigada! Prazer, Caio.
OMELETE: Bom, começando do começo, né? No Céu da Pátria começa com uma mensagem de voz, de alguém reagindo a um convite para participar do filme, perguntando para a pessoa que convidou se você é uma cineasta “de esquerda” ou não. Você teve muitas recusas assim? Como você encontrou pessoas dispostas a aparecer, a conversar?
KOGUT: É, então, esse foi um dos grandes desafios do filme. Tive muitas recusas, até por isso resolvi começar o filme desse jeito - para mostrar: 'olha, a gente está nesse lugar aqui'. Teve gente que não topou de cara, como no exemplo do áudio. Teve gente que topou, e depois desistiu. Foi bem desafiador, porque na verdade era um filme impossível de ser feito. Como é que você vai fazer um filme onde precisa ter uma relação de confiança com os entrevistados, mas o próprio assunto do filme é a impossibilidade do diálogo.
Por isso, eu acho que a gente foi tentando de várias maneiras, e acabou dando certo com as pessoas que estão no filme - e eu acho por um número de motivos. Primeiro que eu sempre fui muito transparente, sempre falei que não estava aqui para convencer ninguém de nada. Tenho uma curiosidade genuína de tentar entender, de ouvir como as pessoas estão pensando. E depois vieram alguns recursos, para tentar criar e construir essa relação.
Primeiro que a gente ficou um ano filmando, é muito tempo, e isso foi ajudando a criar uma relação. Depois, teve o negócio dos diários. Eu pedi para eles fazerem diários em vídeo, e isso foi uma porta de entrada muito legal para a vida de cada personagem, sabe? Foi um jeito de conhecer um pouco mais o mundo deles, com eles. Sempre consciente que isso era um filme também, é claro, porque tinha uma câmera envolvida. Então teve uma série de coisas que foram ajudando a construir essa relação. Mas nunca foi uma relação tranquila.
OMELETE: Eu acho que muita gente vai ficar surpresa com esse acesso que você teve às pessoas dos dois lados do espectro político. E você falou da sua curiosidade de saber como eles estavam pensando - mas além dessa curiosidade, como artista, você acha que há importância de mostrar, por exemplo, a família bolsonarista no filme? Mostrar essa coisa não só como um movimento disforme, que é como a gente tende a ver no noticiário, mas por quem ele está sendo feito?
KOGUT: Eu acho que o tipo de documentário que me interessa fazer são filmes que são uma experiência, sabe? Eles são um um processo. Você entra no filme com muitas perguntas, muitas vezes sem saber onde aquilo vai - nem se vai ter filme! -, cheio de incertezas, dúvidas, mas com um desejo muito claro, muito forte, que vai te movendo. E acho que eu vou também entendendo o filme à medida que ele vai avançando. Eu gosto de fazer filme assim, isso é uma coisa que me interessa.
E eu também gosto de me envolver com personagens. Esse filme é todo em escala humana, ele não é uma análise fria, um olhar mais distante. Ele não é nada disso, você avança com aquelas pessoas e vai sentindo os medos, a esperança, a angústia, tudo que eles estão sentindo. E acho que isso vai resgatando também o seu próprio filme, né? O filme do que que você viveu naqueles dias [da eleição 2022], onde você estava.
Eu me interesso por esse tipo de cinema porque, para mim, cinema é uma coisa existencial, sabe? É um jeito de estar no mundo, é de onde eu estou olhando. E eu estava muito perplexa, como todos nós, com o que estava acontecendo, então comecei a pensar que o jeito de eu olhar para isso era tentar fazer um filme. E também não vejo outro caminho para lidar com essa situação que a gente está vivendo, de tanta desinformação, de toda essa raiva, a não ser tentar olhar para as pessoas. Porque, se você estiver olhando para um tipo, para um estereótipo, não tem como enxergar nada.
OMELETE: Bom, pulando do começo para o final. Aquele final do filme - à parte daquela cena pós-créditos, que é ótima - me deixou muito triste. A quebra do seu diálogo com o Ferreirinha, a constatação de vocês estarem em “Brasis” diferentes… Como você vê aquilo? Tem algo que te dá esperança para reabrir esse diálogo no futuro?
KOGUT: Bom, esperança sempre tem, né? Que também, se não tiver, não sobra nada! [Risos] Mas aquilo que o Ferreirinha fala, de ele estar em um Brasil e eu estar em outro, resume o filme. É muito forte, né? E eu não sei, porque claro que é difícil você olhar para isso e só falar: ‘Poxa, e agora? Estamos perdidos’. Ainda mais nesse momento, em que a gente ainda está no olho do furacão. A gente tem uma eleição ano que vem, que já está aqui na porta, já dominou o debate público. A gente está vivendo ainda, plenamente, todas as consequências daquele 8 de janeiro, da extrema-direita… Está tudo muito vivo ainda.
Ao mesmo tempo em que tudo isso pode ser preocupante, angustiante, teve gente nas sessões que fizemos do filme que veio falar comigo que viu muita esperança ali. Isso eu achei bacana de ouvir, sabe? Porque, realmente, ali você tem também o Brasil do cara que está trabalhando para fazer a eleição acontecer, do cidadão que está empenhado em uma coisa que é o bem comum. Se você pensar, o bem comum é o que faz da gente um país, porque senão a gente é só um monte de gente que calhou de nascer no mesmo lugar.
Então, quando eu olho alguns daqueles personagens, os que estão do lado da esquerda, ou acho que a gente pode dizer do lado da democracia, fico muito esperançosa. Esperançosa porque essa gente existe, essa gente está aí. Esse é um Brasil real. Então, não sei, acho que depende de cada um - mas gostei muito de ouvir esse tipo de comentário. Muita gente se emocionou com a dedicação das pessoas no filme.
OMELETE: Você mencionou que o filme mergulha nos bastidores do processo eleitoral, e que a gente está se encaminhando para outra eleição. Então, tendo estado meio que nas entranhas desse processo, qual é o cenário que você vê para 2026? Você acha que a nossa democracia está mais fortalecida, que a gente tem menos dúvidas em relação ao nosso processo, que há uma confiança maior nele?
KOGUT: É, não sei te dizer, mas tudo indica que vai ser duro, né? Porque agora as ferramentas da desinformação estão ainda mais poderosas. Estamos vendo, esses dias mesmo, como ainda tem tanta gente capturada por essa desinformação. Então, na verdade, tudo está mais agudo. Eu não acho que nada disso se resolveu. A gente vê ali no filme um momento histórico, muito importante, emblemático, mas que de certa forma é também só um episódio de uma coisa que não parou de crescer. Eu acho que é bom, por um lado, lembrar que nada está ganho. A gente ainda está no olho do furacão, e essa próxima eleição vai ser muito complexa. Mas de novo, eu acho que o único caminho é você tentar criar algum canal com as pessoas, porque um dia elas não foram assim.
OMELETE: Muita gente tem comentado que temos um novo subgênero no cinema brasileiro - esses docs, muitos deles dirigidos por mulheres, que abordam as nossas crises políticas de 2016 para cá. Tivemos os filmes da Petra Costa [Democracia em Vertigem e Apocalipse nos Trópicos], O Processo [de Maria Augusta Ramos], Alvorada [de Anna Muylaert]... Você vê No Céu da Pátria como parente desses filmes?
KOGUT: É, então, as pessoas tem me feito essa pergunta. Claro que, quando você faz um filme, você não pensa em nada disso… mas eu estou no mundo, eu percebo. Essas cineastas são minhas amigas - a Petra, por exemplo: os nossos filmes se cruzaram fora do Brasil em festivais. E eu acho que eles são primos, sim. São muito diferentes, mas ao mesmo tempo olham para um momento parecido, questões parecidas.
Agora, por que as mulheres estão fazendo isso? Sei lá. Eu fico feliz porque, claro, é um terreno tradicionalmente reservado aos homens. Então é curioso. Mas isso está mudando muito, agora, tem muito mais mulheres fazendo cinema. Talvez tenha alguma coisa mais desconcertante em ser uma mulher, isso talvez ajude a ter certas certas entradas, certos acessos… não sei.
Mas eu também acho muito difícil você ser um cineasta, estar fazendo filme, e não falar disso - porque é um negócio gigante que dominou a nossa vida. A questão política se tornou central, e não só no Brasil. Eu viajei com esse filme, bastante, fui até para a Coreia do Sul com ele, e a conexão do público com o que se vê ali é muito profunda. Você está falando de um negócio que, claro, aconteceu no Brasil, mas tem muitos pontos de similaridade com o que as pessoas estão vivendo em outros países.
OMELETE: Por fim, eu queria te perguntar sobre um tema que reacendeu, recentemente, com o lançamento daquela carta dos cineastas para o governo sobre a regulação do streaming. Como é que você vê essa reivindicação? Acha que é um passo importante?
KOGUT: Nossa, importantíssimo, né? E a gente está falando tanto em soberania agora. O cinema nacional é um patrimônio do Brasil, e é em grande medida fruto de políticas públicas, que permitiram a muitos filmes de existir. Logo, que as plataformas paguem imposto, sejam regulamentadas, seria até uma coisa evidente! Infelizmente, tem que se lutar muito para que isso seja feito, mas é claro que é urgente, é muito importante, é muito necessário para a sobrevivência do audiovisual brasileiro. Os outros países fazem isso, nós temos muitos exemplos muito felizes.
Eu estava falando da Coreia do Sul agora a pouco, e a política coreana de apoio ao cinema, às artes,rendeu muitos frutos. Você vai lá e fica impressionado em como aquilo é muito importante, muito central para o país. É a identidade deles.
OMELETE: E é importante que se reivindique isso agora, porque nos últimos anos a gente tem visto um reaquecimento do mercado do cinema brasileiro, alcançamos feitos inéditos. De dentro da indústria, como você tem visto esse momento? Ele cria um profissional mais motivado, também, para reivindicar esse tipo de coisa?
KOGUT: Claro! Quanto mais aparece o cinema brasileiro, quanto mais ele se multiplica, mais isso tudo vai sendo legitimado. As pessoas vão ganhando confiança. Na verdade, esse debate está aparecendo mais agora, mas ele veio há anos, né? Ele já está atrasado, de certa forma. Já é uma reivindicação que vem sendo feita, mas tem muitas pressões, não é uma coisa simples de se aprovar. O fato é que ela é necessária, é só olhar para essa carta que tem mais de mil nomes assinados. É muito unânime. E as condições estão todas aí, agora, para que isso aconteça.
OMELETE: Obrigado, viu, Sandra. E parabéns pelo filme novamente!
KOGUT: Obrigada, obrigada a você. Tchau, tchau.
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