Como todo bom documentário, No Céu da Pátria se descobre no meio do caminho
Sandra Kogut vai encontrando potências enquanto registra o processo eleitoral
Créditos da imagem: Cena de No Céu da Pátria Nesse Instante (Reprodução)
Sandra Kogut não tinha um plano. Ou, melhor dizendo: o plano de Sandra Kogut para seu novo documentário era não ter plano nenhum. Conforme No Céu da Pátria Nesse Instante se desenrola, fica claro que a cineasta de Campo Grande e Três Verões e sua equipe não sabiam exatamente o que iriam encontrar quando se dividiram para registrar as experiências de mesários, ativistas de campanha e cidadãos de diferentes posições no espectro político durante as eleições presidenciais de 2022.
O pleito, que terminou com a vitória magra do presidente Luís Inácio Lula da Silva sobre o incumbente Jair Bolsonaro, mas só foi realmente culminando alguns meses depois, com a invasão do Planalto por bolsonarstas que depredaram a sede dos poderes a fim de derrubar um governo legitimamente eleito, proveu material de sobra. Mas quando o filme começou, claro, não tinha como saber disso.
Boa parte de No Céu da Pátria, na verdade, é ocupado com procedimentos eleitorais que só traem a tensão de uma democracia em risco nas entrelinhas. É inegável que há uma atmosfera ao redor das interações entre partidários de Bolsonaro e Lula na rua, dos esforços de bastidores para fortalecer a fé do povo no processo eleitoral e nas urnas eletrônicas - desafiadas por uma campanha de desinformação comandada pelo próprio Bolsonaro. E parte dessa atmosfera é evocada pelas escolhas de Kogut, que assina também a montagem do filme, ao lado de Renata Baldi. Em outro contexto político, No Céu da Pátria Nesse Instante não se preocuparia tanto em sublinhar o esforço descomunal que é realizar um pleito nacional num país vasto como o Brasil. A outra parte já é mais memória afetiva, o filme que vai passando na cabeça do espectador brasileiro que sentiu a ansiedade daqueles meses, e a identifica no rosto dos personagens do filme, sob observação arguta da câmera.
Essa tensão se articula e se ramifica para outras conclusões, no entanto, e faz isso de forma muito orgânica. Acima de tudo, o trabalho de personagem do documentário é excelente: Kogut e sua equipe acompanharam eleitores pelo decorrer de um ano, estabelecendo um diálogo e uma confiança que inexiste no embate político brasileiro da atualidade. No Céu da Pátria tem ponto de vista e partido, especialmente no sentido de defender o processo democrático contra as ameaças levantadas contra ele, mas o seu quê de ironia é reservado para a conversa com o espectador - nunca com os entrevistados. Existe uma curiosidade, uma vontade de descobrir, que sublinha a forma como Kogut entrevista e segue os seus personagens, e é nessa curiosidade que o filme vai encontrando a sua razão de existir, para além de documento histórico.
E assim, muito inesperadamente, ele se torna uma história verdadeiramente angustiante de encontros e desencontros. No Céu da Pátria Nesse Instante é uma crônica do divórcio entre dois “Brasis”. Um divórcio litigioso, que impossibilita a conversa e quase impossibilita a convivência, independente da boa vontade de um ou de dois lados.
Quando se encontra nisso, Kogut até tenta interrogar os motivos dessa quebra, mas largamente se vê limitada a um papel de observadora. Seu filme é um registro do abismo que vai se alargando entre os brasileiros, e o efeito que isso provoca é sufocante. No Céu da Pátria fica com o espectador, conforme os créditos sobem, porque os seus últimos minutos encontram uma forma potente de encapsular os tempos que ele retrata: uma fratura de diálogo que leva ao isolamento, e um isolamento que leva ao escárnio. Quando tudo mais falha, nos resta dar uma risada meio sombria - o que alivia um pouco o desespero, momentaneamente ao menos, mas não faz ele desaparecer.
Kogut só encontrou esse filme, é verdade, porque trabalhou a procura de um. Mas trata-se de atenção, muito mais do que intenção. O seu No Céu da Pátria funciona por isso, e porque confia no espectador para encontrá-lo junto a si mesmo.
No Céu da Pátria Nesse Instante
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