Chun Sun-young percebe que a participação das mulheres nos bastidores da indústria do cinema, na Coreia do Sul e no resto do mundo, aumentou - mas avisa que o “teto de vidro” do ramo continua intacto. Falando ao Omelete antes de trazer o seu Revelação: A Criança de Olhos Fechados para a 14ª Mostra de Cinema Coreano no Brasil, a cineasta comentou sobre as limitações que as cineastas do sexo feminino ainda enfrentam.
“Como professora na Korean National University of Arts, eu percebo que mais de 70% dos meus alunos são mulheres”, aponta ela. “Mas não acho que é possível ter certeza se essa porcentagem refletirá na indústria cinematográfica do país ao longo do tempo. [...] Acredito que a indústria cinematográfica ainda exige o mesmo tipo de ‘produto’ das mulheres cineastas. Há um interesse pelas diretoras jovens, mas não há profundidade”.
Em Revelação, a jovem In-seon (Kim Min-ha, de Pachinko) é acusda de matar um autor famoso, mas alega que o fez em legítima defesa após ser atacada por ele. A ré exige que uma amiga de infância que virou policial, Min-ju (Choi Hee-seo), conduza a investigação do caso, que pode desenterrar segredos há muito escondidos.
Confira a entrevista completa abaixo!
OMELETE: Diretora Chun, Revelação: A Criança de Olhos Fechados é o seu primeiro longa-metragem. Como você elegeu esta história para ser sua estreia? O filme aborda um tema caro a você?
CHUN: A primeira versão do roteiro de Revelação foi escrita há 10 anos. Desde então, eu mudei e, com a minha própria mudança, versões diferentes do roteiro foram surgindo. Apesar disso, um aspecto permaneceu imutável: eu queria fazer um filme sobre crime em que a protagonista fosse a vítima. Eu gosto de thrillers criminais e filmes de suspense, mas as vítimas costumam ser apenas vítimas e, muitas vezes, só servem no filme para desaparecer ou morrer. Então, pensei: ‘E se a vítima sobrevivesse, como ela viveria? Se um novo caso acontecesse, como ela lidaria com isso?’.
Outra motivação para fazer este filme foram as conversas que tive com amigas, que compartilharam suas experiências com a violência. Naturalmente, essas histórias foram incorporadas ao filme. Ao observar minhas amigas, eu me convenci de que a detetive Min-ju, responsável pelo caso, tinha que ser uma amiga da vítima.
OMELETE: Você mencionou que é fã de suspense e de thrillers criminais. Por que acha que esses gêneros seguem tão populares com o passar do tempo? E quais filmes te inspiraram quando estava fazendo Revelação?
CHUN: Sim, eu sou fã desses filmes. Tenho muito interesse na psicologia e no comportamento humano diante do crime, portanto sempre assisti muitas produções desse gênero, desde os clássicos de [Alfred] Hitchcock e Claude Chabrol até cineastas contemporâneos que trabalharam neste âmbito, como David Fincher e Denis Villeneuve. Outra história de crime que gosto muito é a série Breaking Bad.
Mesmo assim, acredito que os filmes que mais me influenciaram foram os thrillers sul-coreanos. Talvez seja porque as emoções e situações dessas produções são mais próximas a mim? Filmes como Memórias de um Assassino e Mother: A Busca pela Verdade, de Bong Joon-ho, e O Caçador, de Na Hong-jin… eu os assisti inúmeras vezes. Essas histórias são muito conhecidas pelo público sul-coreano, apareceram no noticiário e emdocumentários.
Há, inclusive, uma homenagem a uma cena de Memórias de um Assassino em nosso filme.
OMELETE: Kim Min-ha, protagonista de Revelação, é conhecida no Brasil pelo seu trabalho em Pachinko. Como foi o processo de escalação para este papel? Kim trouxe algo de especial para a personagem?
CHUN: Quando escalamos Kim Min-ha, a primeira temporada de Pachinko tinha acabado de ser lançada. Quando a assisti naquela série, pensei: ‘Que atriz é essa?!’. A atuação dela era muito natural, intensa e refrescante, então não pude deixar de entrar em contato para fazer uma proposta de trabalho. Eu procurei assistir a todos os papéis anteriores da Kim Min-ha e escrevi uma carta para ela, comparando os personagens que ela já havia interpretado à In-seon, explicando as coisas que eu gostaria de evocar com ela.
Durante a fase da pré-produção de Revelação, nós duas conversamos muito, e Min-ha deu opiniões muito valiosas sobre a personagem. Por exemplo, ela sugeriu que In-seon fosse uma pessoa normal - não uma personagem extremamente forte. Originalmente, In-seon era descrita como uma mulher de aparência e fala muito brutas, mas na versão final eu acho que vemos muito da identidade da atriz na personagem. Kim Min-ha é introspectiva e fala baixo, mas seus olhos são intensos. Eu gosto muito dessa intensidade, que ficou marcada no filme. Ao invés de focar na aparência, apostamos nas expressões faciais e na atuação.
Acredito que um bom diretor é aquele que dá liberdade ao ator para que ele se expresse. Ainda estou aprendendo como fazer isso. [Risos]
OMELETE: Como a própria realização da Mostra demonstra, o cinema sul-coreano tem atraído cada vez mais atenção ao redor do mundo. Quais você considera que são os fatores responsáveis por isso? Você acha que conta histórias com as quais pessoas do mundo todo podem se relacionar?
CHUN: Recentemente, eu participei de alguns festivais de cinema, e percebi que o público internacional está muito interessado no cinema sul-coreano. Acredito que isso vem da nossa energia e dinâmica, pois costumamos expressar ativamente nossas emoções e ideias sobre política, economia e sociedade - o que pode gerar conflitos, e o conflito é a base de todo drama. Já ouvi pessoas dizendo que os filmes sul-coreanos são bons em criar conflito, e existe aquela frase que diz que, se você viver isolado nas montanhas, não conseguirá escrever uma história. Em outras palavras, se você não tiver experiência com conflitos, será difícil escrever um roteiro para um filme.
Em Revelação, In-seon e Min-ju enfrentam conflitos internos e externos de âmbitos diversos. Os espectadores brasileiros podem não se identificar facilmente com fenômenos específicos da Coreia, como a mídia ou os criadores de conteúdo retratados no filme, mas poderão se conectar com os conflitos vividos pelas personagens, bem como os caminhos para sua resolução. Afinal, o filme aborda uma história sobre seres humanos, violência e justiça, que são temas universais e ocorrem em qualquer lugar do mundo.
OMELETE: Junto com Lee Mi-rang [de Sobre Minha Filha] e Lee Eon-hee [de Regras do Amor na Cidade Grande], você representa as cineastas mulheres da Coreia do Sul na seleção de longas dessa Mostra. Como você avalia a atitude da indústria cinematográfica sul-coreana em relação às artistas do sexo feminino? Houve muito progresso nesse sentido nos últimos anos?
CHUN: Hoje em dia, diretoras mulheres são vistas com maior frequência no cinema e na TV da Coreia do Sul, e o número de diretoras mulheres da nova geração está crescendo consideravelmente. Como professora na Korean National University of Arts, eu percebo que mais de 70% dos meus alunos são mulheres. Apesar disso, não acho que é possível ter certeza se essa porcentagem refletirá na indústria cinematográfica do país ao longo do tempo, até porque, quando falamos sobre as diretoras sul-coreanas, eu acredito que ainda haja um “teto de vidro” - casamento e cuidado com os filhos são questões exigidas de nós, que não desaparecem só por sermos diretoras.
Particularmente, eu também acredito que a indústria cinematográfica ainda exige o mesmo tipo de “produto” das mulheres cineastas. Há um interesse pelas diretoras jovens - por sua sensibilidade e senso estético alinhado às tendências -, mas não há profundidade. Isso é realmente uma pena.
OMELETE: Revelação também conta uma história particularmente feminina, de mulheres que foram alvos de violência buscando justiça. Para você, é importante abordar esse tipo de história no cinema? O que você espera que as pessoas tirem do seu filme?
CHUN: Não foi minha intenção criar um filme com uma grande lição ou focar especificamente em histórias de mulheres. Eu quis chamar atenção para o fato de que, em muitos casos criminais, as vítimas acabam sendo pessoas mais vulneráveis, como mulheres e crianças. Ao ler entrevistas de vítimas, percebe-se que, muitas vezes, o que mais dói não é só o crime em si, mas o sofrimento causado pela descrença e falta de apoio das pessoas próximas à elas. Há também a exposição na mídia e o julgamento dos outros, que afetam a vítima, mas a dor causada pelas pessoas próximas dói ainda mais.
Há uma frase que diz que a solidariedade só é possível quando quem não sofreu consegue sentir a dor da vítima. Dessa forma, como comentei antes, surgiu a ideia de elaborar um filme em que a vítima é a protagonista, e uma amiga de infância volta como a policial responsável pelo caso. Como diretora, meu desejo é sempre que, ao sair do cinema, o público brasileiro consiga levar com carinho as emoções que o filme evoca, e refletir sobre elas em casa.
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