Marcélia Cartaxo agora pode dizer que viveu duas mulheres “clariceanas” no cinema - mas elas não podiam ser mais diferentes.
Em 1985, ela foi a ingênua Macabéa do seminal A Hora da Estrela, de Suzana Amaral, primeira grande adaptação da obra de Clarice Lispector para o cinema - uma performance que lhe rendeu o Urso de Prata de Melhor Atriz no Festival de Berlim. Quarenta anos depois, ela protagoniza Lispectorante, como Glória - uma criação original da diretora/roteirista Renata Pinheiro (Carro Rei), a artista plástica cerca a Casa de Clarice Lispector, monumento no centro do Recife, buscando se encontrar após um divórcio.
“[Glória] é a Clarice perguntando: o que estão fazendo com a minha casa, com o meu monumento, com a minha presença, quando eu não estou mais aqui?”, reflete Cartaxo em entrevista exclusiva ao Omelete. “Mas essas coisas sempre se restauram - com memórias, com presença, revivendo tudo o que ela deixou para a gente. E, principalmente, restaurando de verdade”.
Confira a conversa completa a seguir. Lispectorante já está em cartaz nos cinemas brasileiros.
OMELETE: Olá, Marcélia, muito prazer! Sou o Caio, sou um grande fã seu. Muito bom poder conversar contigo.
CARTAXO: Opa, muito obrigada! Eu que agradeço pelo espaço.
OMELETE: Bom, para começar, vamos falar um pouco da relação Lispectorante e A Hora da Estrela, porque são 40 anos que separam esses dois filmes. Qual foi o papel que a Clarice desempenhou na sua vida nesse intervalo? Sua relação com ela mudou bastante?
CARTAXO: É, mudou sim. Amadureceu bastante, né? Em A Hora da Estrela, eu só conhecia a história da Macabéa, aí depois, no decorrer do tempo, com esse tempão que se passou, eu pude me deparar com muitas outras coisas que a Clarice é, que ela foi e fez na vida das pessoas. Assisti muitos filmes, muitas palestras, muito teatro. E fora as crônicas e os livros dela, é claro. Ela viveu uma vida muito incrível, e nos permitiu muita coisa, deixou muita coisa pra gente.
OMELETE: Sim, e o mais legal é que, apesar dessa conexão da Clarice, acho que a Glória do Lispectorante não podia ser mais diferente da Macabéa. Ela é mais livre, ela é mais assertiva. Você acha que ela meio que vem para vingar o destino trágico da Macabéa? Como é que você relaciona essas personagens?
CARTAXO: [Risos] Olha só, você sabe que eu nunca pensei nisso? Eu acho que ela veio para complementar, para falar de um outro jeito da Clarice. De repente, para falar dela nos tempos de hoje, né? É a Clarice perguntando: o que estão fazendo com a minha casa, com o meu monumento, com a minha presença, quando eu não estou mais aqui? Mas essas coisas sempre se restauram - com memórias, com presença, revivendo tudo o que ela deixou para a gente. E, principalmente, restaurando de verdade.
Eu acho que o Lispectorante vem para pedir que refaçamos a casa da Clarice. Vamos dar valor a essa placa que botaram aqui há tanto tempo, nessa praça, nessa estátua dela. Ali passam turistas, que vão conhecer onde a Clarice morou - aquela mulher que fala tão bonito da vida, da mulher, da liberdade, e nos incentiva a ser livres. É um encontro com a literatura que ela nos deixou, e eu acho que o Lispectorante é uma busca de respeito com a arte e com a mulher que ela foi.
Eu acho realmente que as pessoas mais profundas, de sentimentos mais profundos, de falas mais rebuscadas, de comunicação, precisam prestar mais atenção o quanto ela foi importante na literatura brasileira. Precisamos falar mais, dar mais importância aos lugares por onde ela passou, o que ela deixou, o que ela representa. Acho que o filme nos traz essa perspectiva, a Renata quis juntar as artes plásticas, o brilho do cinema, para dar um brilho àquele lugar. Como é que tantos turistas passam por ali para ver uma casa degradada daquele jeito?
Acho que a Renata pede isso. Vamos respeitar, vamos dar ênfase, vamos trazer de volta o orgulho e o prazer de dizer: ‘Olha só, a casa da Clarice Lispector’. E a Glória faz parte dessa história dentro do filme.
[Nota do repórter: A Casa de Clarice Lispector, na Praça Maciel Pinheiro, em Recife, está atualmente passando por reformas para se transformar em um museu dedicado à obra da escritora. Lispectorante registra a Casa como era antes, em estado de abandono.]
OMELETE: Muito bom. O filme também se apoia muito na sua relação com o personagem do Pedro Wagner[um andarilho, vendedor de rua, por quem Glória se apaixona], e eu acho que vocês mandaram muito bem. Como foi construir a química com ele, e como você vê essa relação dentro da trama?
CARTAXO: Pra mim foi uma novidade, quando eu vi o personagem e vi o que ia acontecer. Ele sendo um andarilho, que fica ali na cidade, em torno da casa da Clarice, e de repente a Glória reconhece nele aquele universo. Um vai ajudando o outro a criar sua arte, e é um encontro muito incrível. Eu acho que eles são iguais, que a Glória está criando algo novo na vida dela, depois de ter deixado tudo para trás, de ter ido em busca de suas lembranças e suas origens; e ele ali, perseguindo os sonhos dele, a arte que ele faz. Eles se conhecem profundamente através das palavras da Clarice.
E trabalhar com o Pedro foi incrível, porque ele me apoiou muito nos momentos mais difíceis da Glória, nos momentos mais íntimos do filme. Ele foi um escudo para mim, e fiquei muito feliz de ter a presença dele ali.
OMELETE: Legal, e outra referência que eu senti no Lispectorante foi a Carmen Miranda. Naquela cena do hotel [o Hotel Central, também no Recife, onde Carmen se hospedava entre shows], principalmente. Você vê uma ligação muito forte entre a Carmen e a Clarice? A Carmen te inspira como atriz?
CARTAXO: Sim, a Carmen me inspira muito! Ela tem um universo vibrante, de muita luz, muita cor, muito Brasil. Aquela brasilidade que era só dela também. O que eu não sabia é que ela tinha passado por Recife, naquele hotel. Foi incrível poder vivenciar aquele momento, a minha surpresa é a mesma da Glória naquela cena.
OMELETE: Bom, além de A Hora da Estrela e Lispectorante tem outros papéis muito marcantes na sua carreira: Madame Satã, O Céu de Suely, Pacarrete. Adoro esses filmes. Como você compara os diferentes momentos do cinema brasileiro que você atravessou?
CARTAXO: Olha, vejo uma evolução muito positiva. De Madame Satã [de 2002] para cá, a minha carreira tem deslanchado um pouco, e isso aconteceu porque os cineastas tem me visto de forma mais diversa, né? Até ali, eu fazia muito aquela mulher que representava questões sociais mais pesadas - muitas emoções, muitos sentimentos mais pesados. Com os personagens de agora, eu entendo que posso me diversificar mais, desenhar melhor essas e outras mulheres também.
Como atriz, eu busco sempre observar as mulheres que encontro, e percebo que são mulheres que, apesar da dor, também têm humor em suas vidas. A existência é mais natural, não acontece só através da dor. Acho que todo mundo tem altos e baixo na vida, seja rico ou seja pobre, venha de onde for. Além da dor, existe alegria, existe brasilidade. Esses são os molhos que eu busco colocar nas mulheres que eu represento.
OMELETE: Sim, e como você mesmo disse a gente está vivendo agora um momento muito positivo no cinema brasileiro. Como é que você vê esse momento? E o que ainda falta acontecer na indústria para a gente continuar crescendo?
CARTAXO: Eu acho que na nossa indústria tem que ter mais oportunidades para os cineastas, as pessoas que estão por aí escrevendo bons roteiros. E também oportunidades para os nossos filmes circularem mais, terem um espaço maior dentro do próprio Brasil. Repercutir mais. A gente tem que batalhar para os cinemas colocarem nossos filmes lá, para as pessoas se acostumarem com o cinema brasileiro.
Tem que manter os editais, as oportunidades que já temos, os cursos que já existem, e continuar essa comunicação com a plateia, trazer o público de volta depois da covid-19. Mas a gente também tem que trabalhar para ter uma indústria permanente, um mercado de verdade. Não podemos ficar nesses altos e baixos - quando entra um presidente meio estranho, ele não pode conseguir destruir a cultura sozinho.
OMELETE: Perfeito! Por último, eu queria te perguntar sobre Cangaço Novo, uma série que o nosso público adora. Você pode nos dar um gostinho, dizer o que esperar da segunda temporada? E como estará a Zeza?
CARTAXO: Olha, a segunda temporada vem mais picante do que a primeira, viu? A minha personagem, Zeza, tem uma passagem importante por essa história, não só por ser a voz do pequeno proletariado, dos pequenos donos de terra… ela vai explodir muito além disso. Ela vem com tudo nessa segunda temporada, promete mais do que a primeira.
Vou te falar, também, que nós do elenco também estamos muito na expectativa. Acho que vai sair só ano que vem, e a produção tem levado um tempo enorme, que a gente fica: ‘Ai meu Deus, não pdoe demorar muito, vai esfriar’. Mas acho que no fim das contas vai dar certo, o público vai ter ainda mais prazer de voltar pra esse mundo, e vai pedir uma terceira temporada.
OMELETE: Com certeza, a expectativa só aumenta! Muito obrigado, viu, Marcélia? Parabéns pelo filme de novo.
CARTAXO: Muito obrigada!
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