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Entrevista

“Bomba atômica, abusos de poder, guerra, fome: mundo não mudou desde Mafalda”

Omelete fala com Mariano Dosono, diretor do documentário biográfico Quinografia

Omelete
6 min de leitura
03.08.2025, às 07H00.
Detalhe do pôster de Quinografia (Reprodução)

Créditos da imagem: Detalhe do pôster de Quinografia (Reprodução)

O diretor argentino Mariano Dosono se sente conectado ao artista gráfico Quino, que ele biografou ao lado do colega Federico Cardone no documentário Quinografía, para além dos dez anos que passou pesquisando sua obra para a produção. Afinal, Dosono e Quino são ambos naturais de Mendoza, cidade vinicultora localizada no noroeste da Argentina, perto da fronteira com o Chile.

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Quino não foi um profeta em sua própria terra, como diz a sabedoria popular”, brinca Dosono em entrevista ao Omelete, logo antes da estreia do seu filme no Festival de Cinema Sul-Americano - Bonito CineSUR 2025. “Ele não alcançou seu maior sucesso na Argentina, ou em Mendoza. Ele se fez na universalidade, num escopo mundial. Talvez por isso eu ainda creia que Quino merece ser relido”.

Na conversa a seguir, o cineasta fala do sucesso global de Mafalda, a criação mais famosa de Quino, do legado deixado pelo cartunista - que faleceu em 2020, aos 88 anos -, e do papel da política na arte. Confira!

OMELETE: Muito prazer em conhecê-lo, Mariano. Primeiramente, parabéns pelo filme, pela seleção no festival, e bem-vindo ao Brasil.

DOSONO: Obrigado, obrigado! Minha primeira vez no Brasil. Estreando no Brasil com Bonito.

OMELETE: Muito bem. Os personagens e as obras de Quino são apreciados em toda a América Latina. Por que você acha que as criações dele se conectam com pessoas de origens tão diferentes?

DOSONO: Nossa, essa é uma pergunta que já me fizeram muito, e é muito difícil de responder, principalmente porque estou falando em nome de alguém que não está aqui. Eu fiz o filme, que é uma biografia do Quino, mas deveria ser ele mesmo a responder essa pergunta. Por outro lado, é verdade que já estou há 10 anos trabalhando neste documentário, e ao longo desde tempo tive que estudar muito não apenas a vida de Quino, mas também sua obra. Digamos, então, que a obra dele se divide em duas: de um lado está Mafalda, genial, que chega a uma fama inconcebível ao redor do mundo, em culturas muito diferentes da argentina - até na China há fãs dela; do outro lado, estão suas obras fora de Mafalda, que são obras de humor, especialmente de humor mudo. Mas vejo que, em ambas, ele alcança uma universalidade, ainda que por caminhos diferentes.

Quando se trata do seu humor mudo, acredito que é uma obra trágica, uma visão trágica do ser humano. Mas uma tragédia que, de alguma forma, busca uma redenção. Há uma analogia, que tento fazer também no filme, entre essas criações e as grandes obras de Goya [pintor espanhol conhecido por criar cenas sombrias e carregadas de dramaticidade]. Quino fez muitos retratos dos idosos, histórias onde a morte os busca, e eles tentam burlar no último minuto - mas é claro que não conseguem, porque ninguém coloca a morte para esperar. Também há retratos de corredores do poder, da burocracia, dos hospitais. Sempre há algo trágico ali, um medo da morte ou da velhice, que torna Quino universal. Ele passou 40 anos compondo essa obra, enquanto Mafalda ele fez por dez anos de sua vida antes de decidir encerrar a tirinha.

Cena de Quinografia (Reprodução)
Cena de Quinografia (Reprodução)

E isso é curioso, porque eu acho que Mafalda se tornou famosa por outras razões. Acho que todos nós nos vemos nos personagens dessa tirinha, vemos a nossa infância ali - a criança que coloca a questão ética, a questão da comunidade, a questão da vida em sociedade, a partir de certa inocência. Quando perguntam por que Quino é tão atual até hoje, me vejo apontando para os temas que Mafalda abordou: a bomba atômica, os abusos de poder, as guerras, a fome. 50 anos atrás, estavam em voga, e hoje continua igual. O ser humano não avançou tanto, do ponto de vista de Quino. Mas lá estava Mafalda e seus amigos, vivendo no mesmo bairro, se gostando, sendo amigos, se apoiando na diferença, eles não se dividem, não se colocam em nações diferentes, em estratos de classe. Eles se unem para superar as questões de sua vivência, seja a bomba atômica ou o tédio da escola. Essa ética que existe em Mafalda transcende gerações e territórios, essa vontade de pensar um mundo em que nos afirmemos na diferença.

OMELETE: Perfeito, e o conteúdo político de Mafalda, como você disse, tem um reconhecimento especial ao redor do mundo. Após dez anos estudando a obra de Quino, qual é a importante da política na arte para você?

DOSONO: Creio que toda arte, necessariamente, é política - ou, ao menos, comporta algo de político em si, seja porque enfrenta uma questão política de forma consciente ou porque, de alguma maneira, ela aflora, reprimida em seu inconsciente. Estou sendo muito freudiano nessa definição. [Risos] Mas creio mesmo que toda política é um ato de criação, e todo ato de criação é político. Há algo de irredutível nisso, e Mafalda é uma obra que o evidencia. Acredito que Quino chegou a expressar algum arrependimento, durante sua vida, sobre o que ele chamava de “obviedade” de alguns enunciados políticos na tirinha. Acho que ele percebeu que, às vezes, esses enunciados políticos nos traem, nos dividem, em vez de nos reunir e buscar fins comum. Mas nenhuma obra pode escapar à sua dimensão política, e especialmente nenhuma obra latino-americana deveria ao menos tentar fazer isso. Não há como se isolar em uma esfera de cristal durante o ato de criação, e não vejo motivo para isso tampouco: se a política é a perseguição de um bem comum, certamente é algo que precisamos fazer mais.

OMELETE: Bela resposta. Faz cinco anos desde que Quino faleceu - você viu o legado dele evoluir nesse meio tempo? Sente que há mais gente conhecendo e apreciando as suas obras, ou não?

DOSONO: Boa pergunta, não sei se isso aconteceu nos últimos cinco anos. Quino não foi um profeta em sua própria terra, como diz a sabedoria popular. Ele não alcançou seu maior sucesso na Argentina, ou em Mendoza - sua cidade natal, que por curiosidade também é a minha. Ele se fez na universalidade, num escopo mundial. Talvez por isso eu ainda creia que Quino merece ser relido.

Claro, Mafalda sempre foi muito lida, é o livro mais editado e mais vendido da história da Argentina, continua vendendo muito bem em todos os lugares. São números astronômicos. Mas acho que a obra de humor mudo dele ainda precisa ser relida, vista por mais gente, apreciada em uma dimensão separada de sua publicação original na revista ou no jornal. É importante descobrimos um Quino artista, artista plástico e visual, que está à altura de outros grandes pensadores do século XX. Ele nos ajudou a pensar o humano no século XX. Ele está a par com, digamos, Foucault e seu Vigiar e Punir na filosofia. Seu discurso sobre o poder é o mesmo, mas aplicado à caricatura, ao humor.

Então, sim, creio que ainda há um longo caminho de reconhecimento para Quino. Precisamos vê-lo como um artista mais completo, além do nosso amor por Mafalda.

OMELETE: Muito obrigado, Mariano. E boa estreia!

DOSONO: Obrigado. Espero que goste do filme!

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