Audrey Diwan só impôs uma condição quando foi chamada para refazer Emmanuelle, clássico erótico do século passado: ela precisava de total liberdade para criar sua própria versão da história. Em entrevista ao Omelete em São Paulo (SP), para onde veio divulgar a estreia do longa no Festival de Cinema Europeu Imovision, a cineasta contou que quase recusou o projeto, e revelou desgosto pelo filme de 1974, estrelado por Sylvia Kristel: “Assisti a apenas 10 minutos dele, o que foi suficiente para eu entender que não era o público-alvo. O filme não foi feito para mim e para o meu prazer”.
A seguir, confira a entrevista completa com Diwan, que ainda toca em cinema brasileiro, na ambientação do seu filme em Hong Kong, e na sexualidade ambígua da personagem. Emmanuelle será exibido em várias praças ao redor do Brasil entre 24 e 30 de abril, como parte do Festival - confira dias, horários e ingressos por aqui.
OMELETE: Bem-vinda ao Brasil, Audrey!
DIWAN:Obrigada, é bom estar aqui!
OMELETE: Queria perguntar primeiro: você está familiarizada com o nosso cinema? É fã dos filmes brasileiros?
DIWAN: Sim, claro. Conversamos sobre isso quando chegamos, e percebi que há muitos filmes brasileiros que amo. Quero dizer, é fácil falar de Walter Salles com o grande Ainda Estou Aqui, mas acho que Aquarius, por exemplo, foi muito importante para mim. Esse tipo de filme... Gosto de pensar em filmes que são como pedras na minha memória cinéfila, que ficam por mais tempo. Sei que serei, de certa forma, inspirada por eles, mesmo que silenciosamente. Acho que Aquarius, ainda mais que Bacurau, ficou assim na minha mente.
OMELETE: Incrível. Bom, mergulhando em Emmanuelle, acho que muitas pessoas conhecem essa personagem pelos livros ou pelo filme de 1974 com Sylvia Kristel. Então, ao abordar esta nova versão, você tentou pensar nela mais como uma adaptação, um remake ou algo totalmente original?
DIWAN: Antes de qualquer coisa, eu nunca pensei que faria esse filme. Os produtores me deram o livro, e eu li por curiosidade. Quero dizer, eu nunca tinha visto o filme [de 1974], e depois de aceitar o trabalho assisti a apenas 10 minutos dele, o que foi suficiente para eu entender que não era o público-alvo. O filme não foi feito para mim e para o meu prazer, obviamente - mas o livro fez tanto sucesso na França, eu quis saber por quê. E foi engraçado, porque quando comecei a ler estava em um avião. Foi aí que percebi que as pessoas lembram do filme, porque olhavam para mim pensando: ‘Olha só, uma garota lendo Emmanuelle no avião, exatamente como no filme’.
De qualquer forma, lendo o livro, me perguntei: o erotismo pode ser uma linguagem cinematográfica hoje em dia? Quando o filme [original] saiu, as pessoas nunca tinham realmente visto um corpo nu na tela grande. Então, funcionou, porque era pura transgressão. Hoje em dia, estamos na era pós-pornográfica, então não pode funcionar dessa forma, eu não estava interessada na ideia de transgressão em si. Mas eu estava interessada na ideia do erotismo como linguagem, ficava tentando imaginar: e se invertêssemos o processo? E se eu estreitasse o quadro, limitasse o que as pessoas podem ver, será que elas vão imaginar mais, será que trabalham junto comigo? É um exercício interessante, mas não é uma razão boa suficiente para fazer um filme.
Então inicialmente eu devolvi o livro aos produtores e disse: 'Não vou fazer isso'. Mas meses depois, comecei a pensar naquela garota, em uma Emmanuelle que não consegue mais sentir mais prazer. O desejo quebrado um bom tema para mim. Provavelmente porque é muito pessoal, eu tive esse tipo de experiência. Então liguei de volta para eles e disse: 'Acho que encontrei minha Emmanuelle'. A partir daí, a minha única questão era: eu estou livre para fazer o que quiser?E eles me disseram que eu não precisava fazer nada relacionado às versões antigas de Emmanuelle, então eu estava dentro.
OMELETE: Bom, eu gosto muito de como o filme tem essa qualidade meio de sonho febril. Gosto da iluminação suave e leitosa, da fotografia, todas essas coisas. Você buscou isso propositalmente? E por que achou que era a nota certa a ser atingida aqui?
DIWAN: Olha, conversamos muito com a equipe sobre o erotismo como algo material, palpável. Não acho que o erotismo esteja relacionado apenas à relação sexual, acho que é o oposto. É uma atmosfera, é algo que você pode sentir no ar. Está no silêncio entre os personagens, está nas palavras que usam - acho que a linguagem pode ser muito erótica -, mas também acreditamos que uma tempestade pode ser erótica. [Risos] Então, estávamos buscando esse sentimento, essa atmosfera, mais do que qualquer outra coisa.
OMELETE: O filme também se passa em Hong Kong, é claro. É um cenário lindo, uma paisagem linda, mas me pergunto por que você escolheu essa cidade. Acha que Hong Kong é um lugar particularmente sensual?
DIWAN: Acho que é um lugar que está entre a tradição e a modernidade. Ele vem com um tipo de fantasia, e é muito fácil se perder naquelas ruas. Aconteceu comigo quando eu estive lá pela primeira vez. Gosto da ideia dos corredores, das pequenas lojas por onde você anda. Não sei se você já esteve lá, mas é uma geografia complicada, e traz consigo uma ideia de mistério. Isso é muito útil para a nossa história
OMELETE: Sim, é verdade. Bem, eu vou entrar um pouco em TERRTÓRIO DE SPOILER aqui, mas realmente quero te perguntar: por que e como você decidiu recusar a intimidade direta entre Emmanuelle e Kei no final do filme? Foi uma grande reversão de expectativas para mim, porque a história parecia estar se encaminhando para esse clímax com eles finalmente ficando juntos, e eles não ficaram.
DIWAN: [Risos] Bom, quando eu comecei a escrever com Rebecca Zlotowski, minha corroteirista que é também uma ótima cineasta, percebi que Kei era um personagem que estava fugindo das nossas mãos. E então pensei: e se esse for o propósito desse personagem? Nos levar ao desconhecido, a algo que não esperamos. E achei que esse era um bom começo para um personagem masculino nessa história, que ele não viesse de encontro às nossas expectativas, mas tentasse definir novos territórios, novas maneiras de se conectar com a ideia da sensualidade, e também uma maneira de tentar ajudar Emmanuelle a voltar às suas próprias sensações. Acho que esse papel dele no filme é mais forte do que seria se fosse a simples realização de uma fantasia clássica, que todos já esperávamos.
OMELETE: Certo, e você também termina o filme com Emmanuelle finalmente atingindo o orgasmo. Na sua mente, o que torna aquele encontro sexual do final diferente de todos os outros que ela teve durante o filme?
DIWAN: Eu acho que o filme é sobre solidão. Vejo que é muito comum na minha geração, e também na geração mais jovem, ficamos presos à nossa própria imagem, a uma ideia de perfeição que deveríamos buscar. E ficamos com tanto medo disso que queremos manter distância dos outros, o que entra no caminho da nossa sexualidade. Então vejo o filme, também, como uma jornada para se conectar consigo mesma, de chegar ao ponto em que você aceita a ideia de vulnerabilidade. Você não precisa ser perfeita. Essa é uma ideia tão capitalista, não é?
Então, eu queria brincar com a frustração, com o se sentir presa ali. Emmanuelle está presa no lugar perfeito, no hotel perfeito, mas também presa em seu corpo. E ela quer abrir a porta. Eu queria que o público ficasse esperando essa porta se abrir, e quando ela se abre aqui está Hong Kong, com o ar úmido, as luzes de neon e a música da cidade. Quero dizer, eis aqui uma cidade que provoca todos os seus sentidos. E sim, sentir isso é como voltar à vida para ela. Acho que está além da sexualidade - é voltar ao prazer, em geral.
OMELETE: Perfeito. No filme, Emmanuelle também se envolve com Zelda [personagem de Chacha Huang], a acompanhante. Então…
DIWAN: Eu amo essa personagem.
OMELETE: Eu também! É provavelmente minha personagem favorita do filme, e parece que ela e Emmanuelle criam uma relação muito íntima. Por isso me pergunto: você considera que, no seu roteiro, Emmanuelle é bissexual? Ou essa é uma relação mais platônica?
DIWAN: Sim, acho que Emmanuelle só é atraída por pessoas. Eu realmente penso na sexualidade para além do gênero, acho que essa é uma questão antiga. Ela se sente atraída por aquela mulher linda, e eu amo essa relação porque, apesar de Zelda ser mais jovem, ela também age como uma professora para Emmanuelle. Ela incorpora algo sobre a próxima geração, na maneira como pensa sobre o próprio corpo, como se interessa por si mesma e pelo próprio prazer. Conheci algumas pessoas como ela durante a minha vida, e sempre me vi fascinada por essas pessoas.
OMELETE: Certo! Agora quero te pedir uma última coisa: Consegue nos recomendar os filmes mais sexy que você já viu? Ou, talvez, filmes que façam um bom par com Emmanuelle, caso as pessoas se interessem em mergulhar mais fundo nesse clima?
DIWAN: Claro, mas espere… sempre que me fazem essa pergunta penso em filmes diferentes. Quero dizer, How to Have Sex é um filme bem recente que gostei muito, e talvez ele não seja o melhor filme sobre prazer, mas fala de sexualidade feminina, e é um filme que ficou cada vez mais forte na minha mente depois que assisti.
Quando se trata de desejo quebrado, acho que Shame é obrigatório. Ele diz algo sobre sexualidade masculina, mas também sobre uma sexualidade fraturada. Um grande filme de Steve McQueen. E também sempre amei o Lady Chatterley de Pascale Ferran [de 2006], uma das primeiras diretoras mulheres que retratou a sexualidade feminina tão bem.
OMELETE: Perfeito, Audrey. Você falou algumas vezes sobre filmes que ficaram com você depois de assisti-los, que foram duradouros na sua memória. Acho que Emmanuelle será um desses para mim.
DIWAN: Oh, que bom! Fico tão feliz em ouvir isso. Muito obrigada.
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