Emilia Pérez poderia tranquilamente ser uma novela da Globo

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Emilia Pérez poderia tranquilamente ser uma novela da Globo

Filme de Jacques Audiard é o folhetim melodramático que nós sempre amamos

Omelete
8 min de leitura
06.02.2025, às 16H56.
Atualizada em 06.02.2025, ÀS 17H23

Eu entendo quem não gostou de Emilia Pérez. É um filme esquisito, com músicas mais faladas do que cantadas, atuações caricatas e um melodrama com um toquinho pretensioso que afasta o público mais casual. É muito fácil entender quem pegou ranço do filme durante a corrida ao Oscar 2025, especialmente devido ao sentimento de rivalidade com Ainda Estou Aqui. Mais compreensível ainda é qualquer má vontade devido às declarações recentes do diretor Jacques Audiard e do comportamento de Karla Sofía Gascón em redes sociais. Qualquer resquício de boa vontade para com o filme implodiu tão rápido quanto a carreira da artista.

Mas Emilia Pérez é realmente tão ruim assim? Quando assisti ao filme, em novembro de 2024, ele havia vencido prêmios em Cannes e começava a se fortalecer como uma das grandes potências da temporada de premiações. Era uma típica noite de outono aqui em Vancouver, no Canadá. Um vento gelado cortava as ruas, mas mesmo assim fui até o único cinema da cidade com o filme em cartaz – responsável pela distribuição norte-americana, a Netflix usa apenas o número de salas necessárias para qualificar o filme para o Oscar.  Saí de lá com a sensação de ter entendido como o filme havia conquistado os corações de Greta Gerwig e do júri no festival francês. No vídeo que gravei ainda na rua, pontuei que se a Netflix realmente investisse na campanha, seria difícil para qualquer outro filme, inclusive Ainda Estou Aqui.

Apesar de toda a crise, continuo gostando de Emilia Pérez. Se ele é um filme para 13 indicações ao Oscar, aí é outra história. Independente disso, toda vez que penso no longa volto ao que escrevi na saída do cinema: “Emília Pérez trabalha a transformação e a busca pela identidade nos arcos das três mulheres protagonistas da história. Um ótimo musical, mais próximo ao teatral e cheio de energia, envelopado em uma história que condensa em 2h um novelão mexicano no melhor sentido possível. Jacques Audiard não consegue encerrar o filme com a força que ele pede, mesmo que ele faça sentido para a história. Mas não importa, ali, [eu] já estava vendido para Emília, Rita e Jessi.”

O maior mérito da produção é também seu calcanhar de Aquiles. A proposta de assistir a uma novela inteira em pouco mais de duas horas é tão magnética quanto desorientadora. Se pensarmos em uma estrutura de novela clássica – seja do Brasil ou do México – sempre temos a primeira fase, a segunda e a reta final. 

1) Em O Clone, por exemplo, a primeira é a história de amor de Jade (Giovanna Antonelli) e Lucas (Murilo Benício), algo proibido e que vai separar os dois até a próxima etapa. A morte do irmão gêmeo de Lucas gera a ideia de criar o clone. Em Emilia Pérez temos o encontro de Manitas (Gascón) com Rita (Zoe Saldaña) e o desejo do narcotraficante em assumir seu verdadeiro eu, uma mulher. É onde o grande drama é montado. Manitas faz uma proposta irrecusável para a advogada, que também tem sua própria ambição. Ele precisa deixar a família para trás e fingir sua morte. Feita a cirurgia, Manitas começa uma nova vida como Emilia. 

2) A segunda fase é o desenvolvimento, que ocupa o maior bloco da trama com a busca por novos conflitos e propósitos para os personagens apresentados na fase citada acima. No folhetim de Glória Perez (juro que isso foi coincidência), este é o reencontro de Lucas e Jade depois de 20 anos, ambos já com suas próprias famílias e novos dilemas, mas ainda cientes da chama da paixão pelo outro. No folhetim de Jacques Audiard, Emilia retorna ao México com Rita para juntar de novo sua família (mantendo o segredo) e tentar reparar seus erros com a fundação para encontrar desaparecidos. Claro, o passado vai assolar Emilia e sua relação com Jessi (Selena Gomez) se torna explosiva.

3) As retas finais de novelas são sempre marcadas por algum plano dos vilões, reencontros e, claro, casamentos com o “felizes para sempre”. Em O Clone, Lucas e Jade finalmente ficam juntos e saem voando pelo deserto, vencendo os “dogmas” da família dela. Em Emilia Pérez, bom… para não entregar spoilers, digamos que o passado do narcotraficante torna tudo mais perigoso.

A comparação entre as duas obras não é totalmente um acaso. O Clone é considerado um dos maiores sucessos da TV brasileira. A história foi vendida para mais de 100 países. Curiosamente, a produção global tem problemas parecidos com Emilia Perez, guardadas as devidas proporções. A novela é o puro suco de estereótipos e conta, sob a ótica de um brasileiro, uma história fincada em outra cultura. “Insha'Allah, muito ouro” foi repetido por todo mundo naquela época. Stênio Garcia falava frases inteiras em outro idioma com seu sotaque árabe-brasileiro. Outros tempos. O fato é que existia uma suspensão da descrença que nos fazia consumir algo como O Clone, que não existe mais. O simples fato de entender a história como uma fantasia contada por um estrangeiro parece não ter mais lugar em um mundo onde a preocupação com representatividade é importante. Por outro lado, há pouco espaço para liberdades criativas como a de O Clone ou Emilia Perez, e toda obra tem que ser puramente calcada na realidade cultural do local, seja ela a do super-herói de ação ou do melodrama barato.

Emilia Pérez é uma obra de fantasia, assim como foi O Clone, assim como foi Indiana Jones e o Templo da Perdição e por aí vai. É uma novela no melhor sentido melodramático possível. Estamos falando da adaptação de uma ópera. Músicas como “El Mal” e “Mi Camino” são representações dos sentimentos de suas protagonistas. A Jessi de Selena Gomez é uma mulher que pareceu apaixonada por Manitas, mas sempre temeu seu poder de causar violência. Assim, ela canta em tom de liberdade, momentos antes de dançar livre e mostrar os seios para o amado: “Quero amar a menina que não me deixaram ser, Quero amar a avó que talvez eu vá me tornar”. A real é que Emilia Perez é um melodrama muito mais simples do que parece. A própria Emilia, que Karla Sofía Gascón interpreta com primor, anda pelos corredores da casa sempre com expressões exageradas e com os sentimentos à flor da pele, como num grande teatro ou em uma ópera - material base do filme - onde até quem está sentado no lugar mais distante da platéia precisa entender o que passa.

No fim, a verdadeira dor causada pelo filme é a de quem é representado em tela. Quando escrevi sobre Emilia Pérez vs México, usei como exemplo o episódio em que Os Simpsons debocharam do Brasil. Todos se ofenderam? Não, mas houve comoção. O filme de Jacques Audiard foi mal recebido pela comunidade latina? Por uma grande parcela, sim. Conheço pessoas da Colômbia, por exemplo, que viram como a principal ofensa, o uso de um narcotraficante como a heroína da história. Para outros, mexicanos, a fala e o sotaque em si é que foram os grandes problemas. 

A grande história que está sendo contada é a de que todos odiaram, mas esse é o mundo de hoje, onde há pouco espaço para ponderações. Por isso, sabemos que não é bem assim. Guillermo Del Toro foi apontado como alguém que não teria gostado do filme – e por isso apresentaria uma exibição de Ainda Estou Aqui. Isso não é verdade. O cineasta mexicano elogiou o filme, chamando de uma “visão hipnótica e fantástica” do México. Issa López, mexicana e roteirista de True Detective, chamou o filme de “obra-prima”. Rodrigo Prieto, diretor de fotografia que já foi de Scorsese à Barbie, criticou a decisão de não contratarem mexicanos para a produção, o que tornou o filme “menos autêntico”. A fala reverberou mais do que seu complemento, onde ele elogiou o aspecto musical da história e não se opôs à diretores estrangeiros contarem histórias sobre o México.

Jacques Audiard afirmou que nunca fez um filme sobre narcotráfico. Emilia Pérez usa o narcotráfico para falar sobre redenção e libertação. Da mesma forma que Glória Perez não fez uma novela sobre o Islã, mas o utilizou como forma de contar a história de amor. Brady Cobert utiliza o holocausto para contar uma história de imigrantes em O Brutalista. Sean Baker utiliza trabalhadoras sexuais para falar sobre o sonho americano em Anora. E assim por diante. Nem todas essas coisas são iguais, mas todas usam algo que não “pertence” ao criador para narrar suas tramas.

Emilia sempre será lembrado por diversos motivos: das polêmicas do diretor e da atriz principal, aos possíveis Oscars que poderá perder por conta delas. Da campanha milionária e conturbada da Netflix, ao fato de ter colocado a primeira mulher assumidamente trans na disputa pelo maior prêmio do cinema. E que tudo foi por água abaixo. Das justas críticas dos mexicanos e pessoas trans sobre a abordagem rasa de Audiard, aos julgamentos das redes sociais, que condenaram o filme por segundos de cenas, antes mesmo de assistirem ao filme completamente – se é que assistiram. Emilia Pérez será pouco lembrado pelo que realmente é: o drama de três mulheres que têm seus caminhos cruzados em busca de uma transformação e de algo melhor. Um musical totalmente diferente do que vemos no cinema americano. Uma novela melodramática e de uma breguice de deixar Walcyr Carrasco e seu Verdades Secretas doidos para terem uma Jessi ou uma Emilia para chamarem de suas.

Eu gostei de Emilia Pérez. E se isso for um crime, do jeito mais melodramático possível, me algeme agora.

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