Diplomacia | Cinesta alemão Volker Schlöndorff fala sobre a religião do cinema e as fronteiras entre realidade e ficção
Lançado em 2013, longa do diretor chega ao Brasil nesta quinta
Cerimônia de exorcismo para os fantasmas da Segunda Guerra Mundial, Diplomacia (no original Diplomatie), filme mais recente do aclamado Volker Schlöndorff, cineasta alemão ganhador da Palma de Ouro e do Oscar por O Tambor (1979), estreia no Brasil nesta quinta-feira, num momento em que o diretor se encontra imerso na nostalgia de recordações afetivas de seu passado romântico. Feliz com a (tardia) chegada a territórios latinos do thriller sobre uma Paris ocupada com nazistas, o realizador de 76 anos está se preparando para voltar aos sets de filmagem em abril, nos EUA, para rodar uma love story livremente inspirada em experiências pessoais: Return to Montauk, com Nina Hoss, a estrela nº 1 da Alemanha na atualidade, e o sueco Stellan Skarsgård (o Professor Erik Selvig da franquia Thor). Embora o título possa evocar a cidade para onde os personagens de Jim Carrey e Kate Winslet se dirigiam em Brilho Eterno de uma Mentes Sem Lembranças (2004), a trama é menos fantasiosa que o do longa de Michel Gondry. Em lugar de fantasia, Schlöndorff enxerga cicatrizes, como as que o levam, com muita constância, para lembranças do jugo nazista, como se vê em seu atual lançamento nas telas brasileiras, no qual o diplomata sueco Raoul Nordling (vivido pelo ator André Dussolier) tenta convencer o oficial nazista no comando da capital francesa, Dietrich von Choltitz (papel confiado a Niels Arestrup) a não destruir a Cidade Luz. A produção deu a ele o prêmio de melhor diretor no Festival de Valladolid, na Espanha. Este confronto com o horror hitlerista e com memórias amorosas de ontem é o foco desta conversa do realizador com Omelete, concedida por telefone de seu escritório em Berlim:
O que poderia unir um filme de guerra como Diplomacia a uma experiência romântica como Return to Montauk?
VOLKER SCHLÖNDORFF – Talvez a percepção de que, aos olhos da câmera, o Passado e o Presente são tempos indistintos. Tudo para a câmera é o Agora, sem distinção. No ato em que uma trupe de atores revivifica um momento qualquer da História, seja a Segunda Guerra de Diplomacia, seja a Idade Média, o Ontem vira Hoje e ganha uma dinâmica de atualidade, no qual costumes antigos geram identificação com o que se vive no dia a dia do nosso momento histórico. Eu nasci em 1939, no ano em que os nazistas começaram sua expansão pelo mundo. Por isso, a II Guerra será sempre parte do Presente para mim. No caso de Return to Montauk, houve uma lembrança que ficou aqui na cabeça. Todos nós vivemos algo assim. Talvez por uma marca desse traço autobiográfico eu tenha decidido contar a história de amor entre um escritor alemão que, de passagem por Nova York, tenta encontrar lá uma mulher com quem viveu um romance no passado. É uma história que dura cerca de quatro dias. Filmo agora em abril, com Stellan e Nina vivendo esses dois estrangeiros na América.
Estrangeiros em solo francês ocupam papéis opostos, o de herói e o de vilão, em Diplomacia, que estreia aqui nesta quinta: um nazista germânico de um lado e um cônsul sueco do outro. A base do filme foi a peça homônima de Cyril Gely. De que forma esse embate entre duas figuras políticas traduz os seus sentimentos em relação às feridas deixadas pelo nazismo?
SCHLÖNDORFF – Eu falei sobre a Segunda Guerra algumas vezes no cinema, em filmes como O Tambor e O Guardião da Floresta (1996), e havia jurado para mim mesmo que não abordaria mais esse período. Porém, a peça Diplomacia caiu nas minhas mãos, falando da opressão nazista em Paris, cidade onde eu estudei, sob uma perspectiva humanista. É uma história sobre honra. Diante dessa perspectiva não havia como não encarar essa temática de novo e o fiz com a mesma diligência de sempre. E honra, na ótica da peça, apontava para uma questão de nobreza.
O que há de nobre nos atos de Dietrich von Choltitz, o governador militar de Paris que teve a missão de destruir a capital francesa?
SCHLÖNDORFF – Ele é assolado por compromissos institucionais e a honra não pode ser validada por instituições. Honra não usa farda, nem levanta bandeiras. É ética. Há quem coloca a honra militar acima de qualquer valor e é isso o que o diplomata vivido por André Dussolier nos revela ao enfrentar Dietrich. O oficial nazista sente que o ato de destruir Paris pode desonrar tudo o que o sua família ensinou a ele sobre proteger patrimônios históricos. Mas, ao mesmo tempo, não cumprir sua missão acarretaria uma desonra aos olhos de Hitler. Mas há, no meio desse dilema, uma cidade e um povo. É essa a discussão que eu tento criar em diálogo com a mecânica teatral.
O que o senhor incorporou da linguagem teatral nas filmagens? Além de usar imagens de arquivo, o filme tem uma dinâmica de thriller de suspense, com ações a cada minuto. De que maneira o teatro ajudou na construção dessa narrativa?
SCHLÖNDORFF – O teatro me dá liberdade para explorar as tensões psicológicas dos personagens no trato com os fatos reais. Essa liberdade vem porque a dramaturgia me lembra que estou fazendo uma representação não uma reconstituição fiel crua. Narro essa história, com base na peça de Cyril, não como um documento de época e sim para extrair dela um conflito específico e expressá-lo como uma reflexão pessoal. Hoje eu vejo muitas superproduções usarem câmera na mão para dar à imagem tratamento de documentário e, com isso, parecer mais real. Por outro lado, vejo documentários que encenam situações, parecendo ficção. Essa mistura pode ser rica, mas diluiu a fronteira entre fato e farsa. O teatro demarca essa fronteira.
O senhor chegou a viver nos EUA e fez filmes importantes em língua inglesa, como uma versão para a TV da peça A Morte de um Caixeiro Viajante, de 1985, pela qual Dustin Hoffman ganhou o Globo de Ouro. Como foi filmar em solo hollywoodiano?
SCHLÖNDORFF – Cheguei aos Estados Unidos com a intelectualidade típica de um artista europeu, achando que tudo deveria carregar uma marca autoral, e lá, eu vi uma realidade muito distinta, mais industrial, na qual você cumpre metas e filma com base em um contrato, sob o controle de um produtor. Lá aprendi a intelectualizar menos. Aprendia a “apenas fazer”. E isso não torna a arte menos legítima. Voltar a Nova York agora com Return to Montauk me rememora essa experiência.
Ao lado de Werner Herzog, Wim Wenders e Rainer Werner Fassbinder, o senhor foi um dos responsáveis pela revolução do cinema da Alemanha, nos anos 1960 e 70. Não por acaso, o 66º Festival de Berlim (11 a 21 de fevereiro) vai exibir um de seus primeiros sucessos, numa retrospectiva da tradição audiovisual germânica: O Jovem Törless, de 1966. Como o senhor avalia a atual situação do cinema alemão?
SCHLÖNDORFF – Hoje há uma profusão de gente jovem filmando lá, gente na casa dos 25 anos fazendo filmes de maneira muito pessoal. E com isso diretores que alcançaram fama nos anos 1990 ou 2000, como Tom Tykwer e Wolfgang Becker, já são encarados como veteranos. E vemos Nina Hoss virar uma estrela mundial. Há, portanto, muita vitalidade, mas não há mais urgência, como havia nos tempos em que eu era jovem e comecei minha carreira. Nos anos 1960, cada país, fora os EUA, tinha, no máximo, cinco ou seis diretores em atividade, com expressão. Hoje não é mais assim, pois as tecnologias digitais permitem que se filme com mais rapidez e facilidade. Essa facilidade ampliou a produção, mas tirou a aura de sagrado do ato de filmar. E, para a minha geração, fazer cinema era quase uma religião.