Liam Neeson fala de se aposentar dos filmes de ação há algum tempo - até porque a virada que sua carreira deu após o sucesso inesperado de Busca Implacável (2008) nunca pareceu inteiramente confortável para o ator, muito embora ele tenha se aproveitado dos benefícios monetários que esse caminho lhe proporcionou. Até certo ponto, afinal, o ícone irlandês ainda se considera um “intérprete sério”, como alguns respiros de sua filmografia nos últimos 20 anos bem demonstram (vide A Balada de Buster Scruggs, Mark Felt, Silêncio), e certamente um intérprete capaz de identificar o ridículo de estar por aí distribuindo socos e pontapés aos 70 e poucos anos de idade. Daí que surge um filme como Último Alvo, que pode surpreender alguns fãs incautos do Neeson pós-Busca Implacável conforme chega nos cinemas brasileiros.
Aqui ele vive o capanga de longa data de um chefe do crime (Ron Perlman) que está tentando passar o seu negócio para o filho (Daniel Diemer), um rapaz arrogante que parte em um trabalho espinhoso ao lado do protagonista. O roteiro de Tony Gayton (Inferno Sobre Rodas) faz uma primeira rejeição da estrutura convencional do filme de ação ao dividir criteriosamente o foco entre as complicações que vão se seguindo nessa trama criminosa e os desenvolvimentos paralelos na vida pessoal do personagem de Neeson, que descobre uma doença neurológica degenerativa, se envolve com uma mulher que conhece num bar (Yolanda Ross, impetuosa e excelente), e tenta se reconectar com a filha (Frankie Shaw), que abandonou há muitos anos.
O que resulta é muito mais um estudo de personagem do que um thriller de ação nos moldes que o astro de Último Alvo tem feito nas últimas décadas. E o diretor Hans Petter Moland - veterano do cinema norueguês, que Neeson trouxe para Hollywood com Vingança a Sangue-Frio (2019) - aproveita o ensejo para observar com curiosidade de estrangeiro os espaços vazios, a frieza úmida, as paredes apodrecidas de uma Boston esparsa, que se reflete no mundo interior do protagonista. Último Alvo começa com um carro vermelho estacionando diante de uma cerca velha, em uma rua ensolarada e deserta que dá para o mar, fotografada com objetividade cruel por Philip Øgaard, colaborador frequente de Moland, enquanto a voz um dia imponente de Neeson se desfaz em um fiapo na narração em off, falando de como o seu pai lhe ensinou a “não ser um covarde”.
A partir daí, o longa vai se estruturando como uma desconstrução de masculinidade trágica, que não tem medo de colocar a ponta dos pés na água turva do melodrama (ou mergulhar de cabeça nela, em alguns momentos-chave). A trilha sonora, baseada em um violão evocativo tocado por Kaspar Kaae, conhecido como líder da banda dinamarquesa CODY, também ajuda a dar o tom - mas, no fim das contas, esse é mesmo o show de Neeson, e ele sabe que precisa provar ao público que ainda consegue segurar nossa atenção sem usar suas “habilidades muito específicas”. Por sorte, o que vemos em Último Alvo é um ator que se entrega sem pudores às emoções e fragilidades exigidas do texto, seja ao emular um sorriso empolgado de criança em uma sequência de sonho ou exibir o corpo fragilizado diante da luz impiedosa de Moland e Øgaard.
E não é que o filme não tenha as suas travas discursivas, ou que a sua visão inclementemente pessimista de mundo não comece a cansar, conforme o relógio vai se aproximando das 2h de exibição… mas esse desprendimento do ator, ansioso por desmanchar a sua imagem de astro invulnerável de ação, disposto como nenhum outro nome do gênero a expor a vulnerabilidade física e emocional do fim da vida de um “machão”, é material dramático impactante para qualquer obra. Último Alvo se impõe, assim, como um dramalhão masculino firme sobre legado e transformação geracional, que analisa a possibilidade de segundas chances com um cinismo cuidadoso, e que encontra em Moland tanto um controlador de tom decisivo quanto um artista inquisitivo sobre as culturas em que está se inserindo.
É uma boa surpresa, e um sinal de que, se os dias de Neeson estão mesmo contatos na ação, talvez esse seja um ponto final que está vindo no momento certo.
Ano: 2024
País: EUA
Duração: 112 min
Direção: Hans Petter Moland
Roteiro: Tony Gayton
Elenco: Yolanda Ross, Frankie Shaw, Liam Neeson, Ron Perlman, Daniel Diemer