Histórias que encaram a provação do luto através da fantasia não faltam. Em Sete Minutos Depois da Meia-Noite, um menino imagina três monstros gigantes para escapar da realidade do câncer terminal enfrentado pela mãe. Em O Babadook, o luto é encarnado em uma criatura grotesca que ajuda uma mulher viúva a se reconectar com o seu filho pequeno. Ari Aster construiu uma carreira levando às telas as manifestações visuais mais aterrorizantes do luto mal-expressado. O Cemitério Maldito. Caçadora de Gigantes. Sombras da Vida. Inquietos. A lista é extensa e até variada em termos de tom e qualidade, mas todos esses filmes encontraram admiradores por mexerem em algo incômodo da condição humana de uma maneira palatável, às vezes até reconfortante.
Nesse sentido, Tuesday: O Último Abraço poderia ser só mais um título para acrescentar a esse curioso subgênero, mas a diretora e roteirista Daina Oniunas-Pusic, que faz aqui sua estreia em longas-metragens, não parece muito interessada em jogar no seguro. No filme da cineasta croata, ainda que o dispositivo fantástico se faça presente, e a aproximação com os chavões do terror seja de certa forma previsível, todo o elemento surrealista da trama é equilibrado pela escolha de abordar a realidade da situação das protagonistas sem muitos rodeios, com uma franqueza emocional refrescante. Nada aqui é “uma metáfora para a morte”, ou “uma alegoria para o luto”... Tuesday é um filme sobre a morte e sobre o luto, que por um acaso resolve personificar essas duas coisas em um pássaro mágico gigante.
O tal pássaro visita a personagem título, Tuesday (Lola Petticrew), presumindo que o trabalho com ela será o mesmo que ele desempenha com todos os outros seres vivos: o de ouvir os seus últimos gritos de dor, súplicas pela vida ou divagações raivosas e, com uma passada de asa elegante, conduzi-los ao próximo plano. Mas Tuesday, que sofre de um câncer terminal e já está acostumada com a ideia de morrer, o trata com gentileza e bom humor, e pede que ele espere um pouco para que ela possa ter uma última conversa com sua mãe, Zora (Julia Louis-Dreyfus), uma mulher que se viu presa em um ciclo de autossacrifício e negação desde que a filha foi diagnosticada.
A criatura em si é uma criação miraculosa de CGI, com suas penas em tons diferentes de laranja e vermelho, seu rosto expressivo na medida certa para fugir do vale da estranheza, e a bela performance vocal de Arinzé Kene, empoleirada perfeitamente na corda bamba entre cansaço existencial e sabedoria milenar. O mais legal desta encarnação da Morte em Tuesday, no entanto, é que ele é um personagem, e não um dispositivo de trama - o encontro do pássaro mágico com Tuesday e Zora é tanto um estopim para o arco dele quanto para o arco delas, o que por definição cria uma narrativa mais integral, mais envolvente, do que a da maioria dos longas citados lá no primeiro parágrafo.
Essa concentração obstinada no íntimo de suas criações também leva o roteiro de Oniunas-Pusic a se posicionar como uma fantasia apocalíptica única. Conforme desenrola as consequências da visita da Morte à família central da trama, Tuesday encena o caos do mundo ao redor desse núcleo narrativo com uma leveza que se reflete na forma como ele lida com o seu tema mais caro: a finalidade da vida humana, e a necessidade de continuar vivendo até chegar a este fim. Com o diretor de fotografia Alexis Zabe (Projeto Flórida) e a designer de produção Laura Ellis Cricks (Beast), a cineasta cria um mundo em colapso enervante, mas que se diferencia só nas sutilezas do mundo em colapso no qual já vivemos. É um equilíbrio fino, que o filme acerta em cheio.
A peça final do quebra-cabeças, é claro, são as performances de Petticrew e Louis-Dreyfus como mãe e filha no centro dessa história de convivência, despedida e superação. As duas atrizes, ainda bem, dividem com o filme a vontade de escapar da pieguice, uma inclinação para usar o humor cáustico não como máscara para seus sentimentos mais “sérios”, mas como revelador das sutilezas de uma relação. Uma das grandes comediantes americanas em atividade, Louis-Dreyfus ganha muitos pontos por não se render à exibição fácil da “atriz cômica encarando um papel dramático”, encontrando ao invés disso rotas inteligentes para reduzir sua personagem, aos poucos, a um núcleo onde convivem uma fragilidade e uma resiliência igualmente autênticas.
Como Tuesday: O Último Abraço, ela não precisa de rodeios e alegorias, floreios e prolixidades, para expressar algo verdadeiro. Por toda a sua fantasia e surrealismo, eis aqui um filme que recusa e desafia poetizações - e que faz da simplicidade inerente a essa jornada a sua maior virtude.
Tuesday - O Último Abraço
Tuesday
Ano: 2023
País: Reino Unido/EUA
Duração: 110 min
Direção: Daina Oniunas-Pusic
Roteiro: Daina Oniunas-Pusic
Elenco: Leah Harvey , Lola Petticrew , Julia Louis-Dreyfus , Arinzé Kene
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