Muito antes de ficar clara qual é a ligação Louis Armstrong e outras lendas do jazz e blues com a história de como a República Democrática do Congo virou um caldeirão de interesses estrangeiros, entendemos a escolha desses gêneros musicais como vinhetas e ganchos narrativos de Trilha Sonora Para um Golpe de Estado. Indicado ao Oscar de Melhor Documentário, o filme de Johan Grimonprez se move como uma dessas faixas. Errático, imprevisível e infinitamente criativo, este mix de documentário e vídeo ensaio pode ser tão exaustivo quanto impressionante.
Capaz de levantar inúmeras notas e tons, partir para direções aparentemente irreconciliáveis e depois unir tudo isso num só refrão, Trilha Sonora parece, como um bom jazz, estar constantemente à beira do colapso. Saia um pouco do tom, e a música rapidamente se transforma numa cacofonia. A bagunça, porém, é parte do apelo. Conforme gráficos, títulos e imagens de arquivo pintam para nós o cenário dos anos 1960, quando a guerra fria e o movimento por direitos civis dos negros nos EUA voltaram seus olhos para uma nação à beira do que, achava-se, seria sua independência, surge um som inconfundível, poderoso e marcante.
O filme abordará tantos nomes, conflitos e locais que você se sentirá, como disse um review apropriado do filme no Letterboxd, abrindo infinitas abas do Wikipedia e sofrendo para lembrar por onde tudo começou. Mas mesmo enquanto o ritmo acelera e os instrumentos ficam mais altos, a direção primorosa de Grimonprez e o trabalho hercúleo do montador Rik Chaubet retornam a narrativa ao seu foco: o que acontece com um povo quando as forças militares mais temíveis deste mundo decidem que sua terra será explorada? De eleições manipuladas a agentes da CIA, de discursos na ONU a mercenários contratados, Trilha Sonora Para um Golpe de Estado pinta um cenário cuja escala só é superada por sua complexidade.
O volume de informações, junto com a extensa duração do filme, significam que o cansaço é um fator, mas ele é, também, a intenção. Conforme vemos os esforços do líder congolês Patrice Lumumba para garantir a liberdade de seu país sendo anulados pelos interesses dos EUA, da Bélgica e (num grau menor, mas ainda real) da União Soviética em expandir seus negócios, suas armas e suas agendas, a fadiga é inevitável. A raiva e a frustração, também. Não esqueçamos do humor, mórbido mas essencial para reconhecer as ironias da política. Falando sobre a influência de Malcolm X nos EUA, sobre minas de urânio usado em bombas nucleares, sobre a música africana e seus derivados ocidentais, Trilha Sonora Para um Golpe de Estado mira nas alturas, e mesmo quando tropeça em alguma estrofe, sua composição permanece vívida, e o filme jamais deixa de comunicar a emoção desejada.
O feito é auxiliado pela importância dos eventos registrados no documentário, uns que quando bem analisados revelam o histórico de mineração – cultural e física – do hemisfério sul, e como o poder opera sorrateiramente para desestabilizar e conquistar. Acima de tudo, Trilha Sonora Para um Golpe de Estado é uma grande obra de curadoria e organização. Grimonprez não tem medo de adicionar mais um músico à sua orquestra, e apresenta um novo rosto ou acontecimento com o tempo mais rápido possível. É irônico, até, que as figuras menos exploradas sejam exatamente as dos cantores e bandas da época. Sua relação com a queda de democracias é explorada mais no nível criativo – particularmente nas letras das músicas, frequentemente cheias de protesto, celebração e revolta – do que no pessoal. Eles são coadjuvantes aos seus próprios sons.
Ainda assim, é fácil entender como o jazz virou o motor dessa narrativa, e como informou o excelente trabalho de edição, de gráficos e textos do filme. Juntos, eles dão a esse grande retrato da história ritmo e harmonia – em outras palavras, a trilha sonora.
Com distribuição da Pandora Filmes, Trilha Sonora Para um Golpe de Estado entra em cartaz nos cinemas brasileiros em 30 de janeiro.
Ano: 2024
País: Bélgica
Classificação: 14 anos
Duração: 2h30 min