Em seu seminal ensaio contra a narrativa de trauma, Parul Sehgal descreve os efeitos dessa ideia, hoje usada por escritores e cineastas para descrever personagens e criar pontos de partidas em suas tramas, como algo que parece asfixiar todos os outros aspectos da ficção. “O trauma supera todas as outras identidades, evacua a personalidade e a recria à sua própria imagem,” ela diz. Em outras palavras, o tema define a arte. Olhe para a televisão e o cinema moderno, com sua miríade de contos sobre sobreviventes cujas jornadas são definidas na superação, ou aceitação, de seu passado traumático, e é difícil discordar. É justamente por ir na contramão disso tudo que Sorry, Baby – a estreia diretorial de Eva Victor – ressoa de maneira tão eletrizante.
Há, sim, um trauma em Sorry, Baby. Ele acontece com Agnes – a protagonista vivida por Victor como uma mulher de postura lúdica, palavras honestas e personalidade calma – no seu último ano cursando literatura e inglês na universidade, e acontece quando ela está sozinha com o professor responsável pela mentoria de sua tese final. Eu não preciso descrever mais do que isso, porque apesar do filme oferecer mais detalhes numa cuidadosa cena entre Agnes e a melhor amiga Lydie (Naomi Ackie), o evento em si – que você já sabe o que é – nunca ganha o palco principal do filme. Sorry, Baby e Agnes se recusam a ser definidos pelo que acontece naquela casa, naquela noite. Isso não quer dizer que Sorry, Baby não seja uma história perspicaz sobre a vida de uma mulher que precisa aprender a viver com o que passou.
Mas aí está a questão. Sorry, Baby é primariamente sobre a vida de uma mulher. Uma pessoa. Um mundo em si mesma. Uma mulher que se sente sozinha depois que Lydie se muda para Nova York, que se sente estranhamente leve na amizade com benefícios desenvolvida com o vizinho Gavin (Lucas Hedges), que é brilhante como professora, que encontra companheirismo numa gatinha, e que sofreu algo que ninguém deveria sofrer. O roteiro de Victor – um texto que na própria organização em quatro capítulos, sendo cada um para um ano diferente, e apresentação fora de ordem cronológica já busca subverter suas expectativas – não é sobre como Agnes passa a ser uma metáfora ambulante da luta gerada pelo que a traumatizou. A palavra trauma sequer surge. É claro que a noite com Decker (Louis Cancelmi), informa e infecta seu cotidiano, mas Agnes jamais é reduzida a uma série de sintomas.
Não há arma melhor para Victor deixar isso claro do que o humor. Aqui, a capacidade de rir, algo que vem naturalmente a Agnes e contagia aqueles ao seu redor, se torna um ato de resistência quieta. Profundamente sem vergonha, ao ponto de deixar outros desconfortáveis, a protagonista interpretada por Victor com sutileza calorosa arranca risadas do público o tempo todo. Quando o faz, entendemos que ela não perdeu sua identidade. Agnes continua Agnes. Sorry, Baby encontra nesse elemento cômico o caminho para explorar com honestidade refrescante a dificuldade de dialogar sobre o que Agnes viveu. Victor reconhece o nervosismo de se colocar isso em palavras, e de assustar quem as escuta essas palavras. Sua disposição em encarar tudo isso dá ao filme uma ponta afiada inesperada – quando outros são surpreendidos por como Agnes aborda o assunto, Sorry, Baby gera uma espécie de alívio.
Essa franqueza significa que os momentos mais sérios, onde vemos como Agnes se sente insegura ou assustada, funcionam menos como uma tentativa gratuita de dramatizar o trauma minando dele uma emoção superficial, e mais como cenas de agonia genuína. A própria personagem expressa isso num dos capítulos, quando admite que sente pânico e medo ao pensar no que vivenciou, mas vergonha e surpresa quando percebe como aquilo não ocupa mais toda a sua mente. O poder de Sorry, Baby está justamente em entender quão incrível é ver alguém que perde esse constrangimento.
Chamar de difícil o controle de tom necessário para fazer isso tudo funcionar é um tremendo eufemismo. Um pouco para lá, e Victor arriscaria desprezar o impacto físico e emocional de ser uma mulher que passou por algo assim. Um pouco para o outro lado, e Sorry, Baby seria mais uma das experiências cinematográficas maçantes e previsíveis sobre pessoas que só são dramaticamente interessantes enquanto não atingem um grau de realização pessoal alto o suficiente para deixar a bagagem para trás de uma vez por todas. Quase milagrosamente, a diretora atinge o equilíbrio perfeito.
O resultado é um filme urgente. Um que parece abrir uma nova dimensão na forma como esses tipos de narrativas podem ser tratadas. Sorry, Baby sugere e comprova que pessoas com feridas são dignas de atenção antes, durante e depois do processo de cicatrização, que por mais que aquela marca permaneça para sempre em sua pele, há mais espaços em seu corpo para outras. Marcas de beijos, de crescimento, de dor, de compromisso. Marcas de uma vida completa. Sem nunca esquecer a gravidade da situação mas sem nunca deixá-la monopolizar o holofote, Sorry, Baby encontra na abordagem sincera, no humor persistente e numa personagem instantaneamente inesquecível uma nova e valiosa forma de olhar para o trauma. Aqui, é a arte que define o tema.
Sorry, Baby
Sorry, Baby
Ano: 2025
País: EUA
Duração: 104 min
Direção: Eva Victor
Roteiro: Eva Victor
Elenco: Naomi Ackie , Louis Cancelmi , Eva Victor , Lucas Hedges
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