Cena de Sem Coração (Reprodução)

Créditos da imagem: Cena de Sem Coração (Reprodução)

Filmes

Crítica

Sem Coração traduz em filme a ânsia irresistível de partir - e também a de ficar

Filme de amadurecimento brasileiro prioriza sensações para refrescar o subgênero

Omelete
3 min de leitura
03.06.2024, às 07H51.

Não faltam filmes sobre os muitos momentos de limiar que compõem a experiência humana universal da infância e da adolescência. Mas não são tantos desses, chamados em inglês de coming of age (ou simplesmente “filmes de amadurecimento”), os que conseguem captar a melancolia ao mesmo tempo absurdamente dolorosa e colorida por tédio que acompanha esses limiares. A descoberta da falibilidade dos pais, a exploração do mundo para além da casa, a primeira experiência sexual, o impulso para se afastar da cidade natal - há em cada uma dessas transformações uma angústia tão aguda, temperada por despreparo e ansiedade e imutabilidade, que se torna também entorpecente.

Sem Coração, premiado longa alagoano de Nara Normande e Tião, encontra seu maior diferencial na captura dessa mesmíssima sensação. Na trama, livremente inspirada na juventude praiana de Normande, Tamara (Maya de Vicq) é a jovem filha de uma família abastada de um vilarejo de pescadores, que aproveita o seu último verão antes de partir para Brasília a fim de fazer faculdade. O roteiro, também assinado pela dupla de diretores, se estrutura nos dramas e crises de Tamara e de seus amigos, todos de uma classe social inferior à da menina. Nessa fragmentação, Tião e Normande tocam de forma refrescantemente direta, até celebratória, em questões de identidade sexual, desigualdade social, posicionamento político, masculinidade e responsabilização familiar em um contexto socioeconômico.

Por mais que Sem Coração mantenha o olho atento a tudo isso, no entanto, é ao unir seu retrato de subjetividades distintas com uma linha comunal de trepidação identitária que ele encontra algo de verdadeiramente especial. A preocupação de Tamara com o afastamento da cidade natal é no fundo a mesma de Sem Coração (Eduarda Samara), sua crush, que não quer deixar o pai pescador para trás, e sabe que por isso talvez nunca consiga viver uma paixão como a que se sugere com a protagonista. Por baixo das camadas da diversidade assumida e abraçada pelo filme, ambas estão preocupadas em escolher um caminho - mesmo que ele seja, de fato, o único disponível - e perder quem poderiam ter se tornado caso tivessem escolhido outro.

No encontro ansioso e no desencontro decidido entre as duas, Sem Coração evoca não só amores de adolescência perdidos, como desejos de adolescência nunca realizados. É uma bela contradição: um filme tão preocupado em celebrar o desejo, que se esforça tanto em suscitar, pela encenação, caracterização e fotografia, as casualidades excitantes que o compõem; mas também um filme que reconhece o poder hipnotizante dos caminhos não seguidos, dos toques não concretizados, das distâncias que se impõem diante das escolhas que se apresentam diante de cada um - nunca mais consequentes do que na juventude. 

Puxadas por ânsias e obrigações irresistíveis e opostas, as protagonistas de Sem Coração são tratadas pelo filme com o mesmo peso, como dois lados da mesma moeda. Até as performances de Maya de Vicq e Eduarda Samara se aproximam, empoleiradas em uma introspecção observadora, em movimentos reprimidos que só acham momentos fugazes de catarse. E Sem Coração se demora nesses momentos, sejam eles vividos pelas protagonistas ou por seus amigos, evocando Wong Kar-wai em uma sequência picotada à beira-mar, segurando e colorindo em tons de sépia ensolarados os abraços, beijos e agarrões que compõem um momento emocional entre colegas, amantes ou mãe e filha.

É como se o filme quisesse reconhecer a grandeza desses toques, mesmo que eles sejam atropelados pela acachapante tragédia dessa vida que nos afasta deles. Difícil pensar em um filme de amadurecimento que tenha segurado essa contradição tão bem, e traduzido-a em uma imagem tão eloquente quanto a que estampa os pôsteres de Sem Coração: duas adolescentes franzinas, apequenadas ainda mais pela baleia gigante da qual se aproximam, prestes a serem engolidas (ou, quem sabe, acolhidas) por ela.

Nota do Crítico
Ótimo
Sem Coração
Sem Coração

Ano: 2023

País: Brasil, França, Itália

Duração: 95 min

Direção: Nara Normande, Tião

Roteiro: Nara Normande, Tião

Elenco: Eduarda Samara, Maya de Vicq, Maeve Jinkings

Onde assistir:
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