No papel – literalmente – a razão pela qual Marina (Llúcia Garcia) precisa que seus avós reconheçam sua existência, algo que eles podem fazer com uma simples ida ao cartório, é para que ela esteja habilitada para receber uma bolsa para a universidade. Mas, se essa assinatura parece ter o poder de confirmar sua existência em um sentido mais profundo, não é um acidente. Morando em Barcelona (Espanha), ela perdeu a mãe biológica ainda pequena, e nunca conheceu o pai. Em busca de entender seu passado, ela viaja para Vigo numa migração que espelha a peregrinação religiosa cujo nome serve como título para Romería, de Carla Simon.
Marina também nunca viu os tios e avós. O que ela entende como família são pais adotivos e, no máximo, o lado materno de sua ascendência. Quando ela chega nas praias de Vigo, na Espanha, é julho de 2004. Sua câmera, com todo o ruído digital dos equipamentos da época, registra as ondas do mar e colinas verdejantes enquanto a menina narra os procedimentos lendo a partir do diário escrito pela mãe no fim dos anos 1980, volume que ela obteve recentemente e que acendeu sua necessidade por respostas. O contraste das imagens mais modernas com a narração de acontecimentos de duas décadas antes é a primeira de algumas curvas temporais que Simon usa para pautar sua história de identidade e herança.
Não é tarefa fácil para a menina, que acabou de completar 18 anos e sonha em cursar cinema. Quando seu avô, a quem ela jamais havia visto, escuta isso, ele brinca que não sabia que era possível estudar filmes, e essa é apenas uma das várias vezes em que seus parentes sanguíneos parecem não entendê-la, ou até rejeitá-la. Mais tímida, ela não bebe ou usa drogas, mas tem um espírito aventureiro que rapidamente lhe aproxima de Iago (Alberto Gracia), o único dos tios com quem ela parece criar uma conexão genuína. Pior do que essa estranheza, porém, é como eles não a ajudam em nada na busca pela ascendência. Em suas conversas com os irmãos do pai, Marina recebe informações contraditórias e mais mistérios. Dos avós, só há o silêncio.
Simon filma o litoral espanhol como um verdadeiro sonho de verão, conferindo às andanças de Marina um grau de surrealidade que dá a Romería o gosto de uma lembrança. Podemos praticamente sentir a maresia nas noites que Marina usa para sair atrás de informações, e se há uma sensação efêmera lhe esperando em cada esquina, não é um acidente. Conforme as poucas certezas que tinha sobre seus pais vão sumindo, Marina parece entrar num mundo sem garantias, e o filme reflete isso com seu belíssimo retrato do local. Usando suas próprias experiências como base, a realizadora espanhola faz mais do que recriar cenários, ela traz a sensação transiente de ser um estranho num mundo cada vez mais irreconhecível.
Nem todos esses truques funcionam, entretanto. Há um ensaio de romance estranho entre Marina e seu primo Nuno (Mitch Martín) que parece ser confirmado quando, numa sequência febril, Simon enfim nos transporta para a época dos pais da garota e revela os segredos que estávamos aguardando, colocando tanto Garcia quanto Martín para viver o casal. No caso dela, ainda há a justificativa de uma semelhança entre mãe e filha, algo que todos mencionam, mas no dele – que também é um órfão – a escolha traz questionamentos demais, especialmente quando consideramos suas implicações para os primos.
Mais danoso, porém, é como esse flashback troca a intriga do filme por uma tragédia pouco engajante, apoiada em clichês e antagonista à maravilhosa ambiguidade que sublinha as cenas no presente. Simon ainda é uma grande diretora, e o impacto visual desse passeio temporal sustenta Romería por si só. A resposta, infelizmente, não está à altura das perguntas. Como resultado, a jornada de Marina rumo ao seu eu termina menos como um descobrimento pessoal e mais como o preenchimento sistemático de vácuos.
Romería
Ano: 2025
País: Espanha, Alemanha
Duração: 114 min
Direção: Carla Simón
Roteiro: Carla Simón
Elenco: Alberto Gracia , Llúcia Garcia , Mitch Martín
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