Descomplicado, Quinografía revela partes do cartunista ofuscadas por Mafalda
Documentário é modesto, dedicado e inteligente - exatamente como Quino foi
Créditos da imagem: Cena de Quinografía (Reprodução)
O cartunista Quino nunca escondeu que enxergava o sucesso de Mafalda, sua personagem mais famosa, como uma espécie de “servitude”. Uma vez que uma criação se torna mais famosa do que seu criador, entendia o grande artista argentino, e a demanda para continuar expandindo-a se perde no horizonte interminável do futuro, a criatividade inevitavelmente perde a briga contra a necessidade financeira. Até o artista mais inventivo se vê repetindo ideias, no marasmo de viver sempre no mesmo mundo. Exceto que Quino, como bem lembra o documentário Quinografía, não se permitiu essa servitude por muito tempo - mesmo com vendas astronômicas ao redor do mundo, Mafalda foi aposentada em 1973, pouco mais de dez anos depois da publicação de sua primeira tirinha.
O que o filme - dirigido por Federico Cardone e Mariano Dosono, a partir de roteiro, pesquisa e narração de Mariana Guzzante - faz, então, é entender o que houve ao redor deste período na vida de Quino. Antes e depois de Mafalda são os momentos que mais fascinam Quinografía, doc em parte baseado em uma entrevista dada pelo artista a amigos no ano de 2014. Encontrada em VHS nos arquivos do cartunista após sua morte, em 2020, a conversa gravada abraça tópicos da infância de Quino na cidade de Mendoza, na Argentina (criado por pais republicanos, refugiados da perseguição política na Espanha) até a intimidade da relação com a mulher, Alicia Colombo (que se converteu em uma espécie de empresária dele no momento crucial em que a família se exilou na Europa, fugindo da ditadura militar argentina), passando por angústias artísticas e pelo paradoxo entre pessimismo e humanismo que alimentou sua carreira.
É uma entrevista reveladora, e Quinografía expande o seu impacto com jogadas de montagem espertas - em mais de um momento, por exemplo, Cardone e Dosono cortam da gravação de 2014 para outra bem mais antiga, em preto-e-branco, na qual Quino conversa com um apresentador argentino na TV local. Os cortes acontecem por vezes no meio de uma frase, e as histórias que Quino conta em uma se completam em outra, como se recortando e colando as palavras naturalmente fragmentadas da memória humana. E tantas outras vezes Quinografía ainda sobrepõe as falas do artista, ou daqueles que o conheciam, com tirinhas dele que ilustram e ironizam aquele mesmo pensamento. Uma das sensações mais bacanas levantadas pelo filme é essa: parece que você está vendo vida e obra de um artista finalmente ligadas pelo cordão umbilical inevitável que existe entre elas.
O segundo efeito dessas escolhas, complementadas por entrevistas com amigos e colegas de profissão que atestam sobre muito do que está nas entrelinhas das próprias falas de Quino, é criar um retrato honesto de um homem que também parece tê-lo sido, em todos os âmbitos de sua vida. Tudo na história de Quinografía converge, ao invés de divergir - não há disse-me-disse ou picuinha, não há incerteza nessa biografia, e os conflitos que os terceiros apontam na vida e obra do artista são admitidos por ele mesmo. Quino entende que seu humor é alimentado por um profundo desgosto do mundo, confessa medos que sublimaram em sua arte e foram percebidos por seus amigos, assume inseguranças que travaram sua eloquência como artista, narra ele mesmo os desencontros que teve com a esposa.
Não há polemização em Quinografía, porque eis aqui um ser humano profundamente ordinário, com deficiências profundamente ordinárias, que justamente por ser assim e abraçar essa ordinariedade encontrou um público que o adora ao redor do planeta. E até os diretores do documentário entendem isso, decidindo dar a Quino a graciosidade de um filme ágil (1h15) e gentil, que nada tem de épico ou veneratório. Em meio a tantas histórias de fama que insistem no excepcional, é uma proposta surpreendente e saborosa de biografia.
*Quinografía foi exibido no Festival de Cinema Sul-Americano de Bonito - Bonito CineSUR 2025. Fique de olho no Omelete para a cobertura completa.
Quinografia
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