Cena de Quatro Paredes (Reprodução)

Créditos da imagem: Cena de Quatro Paredes (Reprodução)

Filmes

Crítica

Quatro Paredes faz filme elegante e controlado a partir de história enfurecedora

Com rigor jornalístico, Shiori Itô expõe seu próprio caso de estupro em documentário

Omelete
3 min de leitura
27.02.2025, às 09H45.

Lá no terceiro ato de Quatro Paredes, seu documentário que concorre ao Oscar 2025 da categoria, a diretora Shiori Itô admite que encarar o estupro que sofreu em 2015 como uma história a ser contada - primeiro em livro, e depois no cinema -, do ponto de vista jornalístico, foi também uma estratégia de sobrevivência. Só em algumas cenas do longa, que bate na 1h40 de duração enquanto cobre mais de quatro anos da litigação de Itô contra o seu abusador, o também jornalista Noriyuki Yamaguchi, ela se permite esses momentos de vulnerabilidade, de entender que assumir a autoria da própria história dessa forma também foi uma maneira de despersonalizar o que aconteceu com ela. “Não tenho me olhado no espelho é um refrão comum nesses momentos.

É louvável que Itô, como artista que quer se conectar com o público - mesmo no campo do documentário, o cinema é muito mais sobre conexão do que o jornalismo -, se permita essa introspecção. Mas ela é o acompanhamento, e não o prato principal, de Quatro Paredes. Mesmo que nos convide a acompanhar sua protagonista-cineasta nos momentos mais íntimos da jornada até a condenação civil de Yamaguchi (obtida no final de 2019), este é um filme que prospera no rigor, nas restrições que Itô impõe a si mesma para caminhar naquele limiar delicado entre repórter, garota-propaganda de um movimento social, e autora internalizada de uma narrativa de sofrimento.

O resultado é um documentário que: primeiro, sabe se conduzir através da burocracia de um processo judicial - especialmente, um que busca desmontar essa mesma burocracia para servir às vítimas dela - sem exaurir o espectador em números, enterrá-lo por baixo de papéis; segundo, faz entender a profunda ferida emocional da qual vem a necessidade de justiça nesse caso, e estendê-la para os lados certos conforme a situação de Itô vai se transformando, sem explorar de maneira sensacionalista o choro e a forma como essa luta consome a vida de quem a trava; e terceiro, confia no público para se revoltar com o que está vendo sem precisar que lhe digam para fazer isso.

Na contramão de muitas narrativas de abuso que emergiram na mídia pós-#MeToo, por exemplo, Quatro Paredes não parte de uma descrição clínica dos eventos, ou de uma biografia exaustiva da vítima, para reafirmar o seu distanciamento objetivo. Itô tem os recibos, é claro, mas os inclui no filme com parcimônia venerável: a gravação das câmeras de segurança do hotel, logo no começo, antes do título; os relatos de testemunhas pontuados com cuidado durante a progressão do caso judicial; e o seu próprio testemunho do incidente, que chega só no terceiro ato, e é colocado na boca de outra pessoa.

O ponto de Quatro Paredes é justamente revelar a dor que causa a abertura dessas intimidades em uma esfera pública, então Itô nos faz sentir a sua relutância em mastigá-las mais uma vez no cinema. A tensão do filme está justamente entre o impulso de despersonalização, tão útil como estratégia de sobrevivência quanto como armadura de legitimidade pública (“manter a compostura” é algo que ainda se espera de vítimas), e a realidade crua de um ato criminoso que Itô descreve, em uma passagem de seu livro incluída sem muito alarde no filme, como “o assassinato da alma”.

O que Quatro Paredes vai alcançando, assim, é um equilíbrio que nem todas as narrativas de abuso alcançam. Elegante sem ser inacreditavelmente estoico, rigoroso sem ser robótico, ele é um relato obstinadamente profissional, de eloquência aparentemente interminável, mas que também se permite um resguardo diante daquilo que parece ser indizível. Itô sai do filme com a dignidade intacta - mas insiste que a vejamos como um humano, e não uma história. Pode ser que o recado tenha sido tanto para ela mesma quanto para nós, mas ele definitivamente foi passado.

*Quatro Paredes estreia dia 10 de março nas plataformas digitais brasileiras.

Nota do Crítico
Excelente!
Quatro Paredes
Black Box Diaries
Quatro Paredes
Black Box Diaries

Ano: 2024

País: EUA, Reino Unido, Japão

Duração: 102 min

Direção: Shiori Itô

Onde assistir:
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