Pele de Asno | Crítica
Pele de asno
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Os contos de fadas, reconhecidamente, são verniz - para as almas mais inocentes - que cobre madeira cheia de veios, nódulos, nobreza e, por vezes, carunchos ou cupins. A Europa, berço das civilizações invasoras mas ao mesmo tempo as que mais se aprofundaram no desenvolvimento das artes, interessou-se e criou uma "escola" de contos de fadas. Histórias que atravessaram os tempos com sua aparência inocente e infantil e seu interior recheado de máculas, culpas, segundas-intenções, em suma, retrato daqueles seres humanos, brancos e cristãos, que se desenvolveram na encruzilhada, entre o oriente e o ocidente.
Jacques Demy, diretor que demonstrou amor pelos musicais em Os guarda-chuvas do amor (1964), lançou seis anos depois Pele de asno (Peau dâne, 1970). Melhor, mais sarcástico, com números musicais mais bem resolvidos e de uma exuberância visual a toda prova. Trabalhou novamente com Catherine Deneuve - no todo, foram quatro filmes com uma das mais belas atrizes francesas -, sendo que nesse caso em dose dupla. Catherine faz o papel da rainha à beira da morte e também o de sua filha, a bela princesa por quem o pai, o rei (Jean Marais), se apaixona; após a morte da rainha. No leito de morte da esposa o rei promete que nunca mais se casará, sendo contestado por ela, que exige uma nova união sua, desde que a pretensa futura esposa seja mais bela que ela. Foge da vida e da filha, a quem não acompanha durante o crescimento, notando-a já jovem adulta e apaixonando-se a ponto de fazer a inusitada proposta de casamento.
Nesse verdadeiro conto de fadas musical, existe um asno que - digamos de maneira um pouco menos chocante - defeca moedas de ouro, jóias e pedras preciosas, tornando-se a principal fonte de renda e de desenvolvimento do rei, à moda da famosa "Galinha dos ovos de ouro". Mas, de maneira distinta, também, já que no conto em que a fonte de renda é o galináceo, os caminhos escolhidos são diferentes e remetem à inveja, ao desejo de posse do bem alheio. No caso do jumentinho não há o desejo ostensivo por parte de outros, mas o destino reservado a ele evidencia o que a luxúria e o desejo podem causar na cabeça do homem. Na tentativa de fugir do casamento proposto, a princesa procura o auxílio de sua fada-madrinha - estamos dentro de um conto de fadas, não? - que a aconselha a enrolar o pai com pedidos complexos; de presentes aparentemente impossíveis de serem confeccionados. E aí uma das melhores facetas do filme toma corpo, denuncia uma opção estética elaboradíssima para a sua composição, de tremendo bom gosto e excelente resultado. Ao pedir vestidos que tenham o brilho da lua ou o do sol, Jacques Demy, seu diretor de arte Jacques Dugied e seu fotógrafo Ghislain Cloquet encenam momentos de estupendos tratamentos cromáticos e de luz. As "luzes" que iluminam a sala do rei com um tênue azul - no caso do vestido-lua - ou com um dourado translúcido - vestido-sol - raras vezes tive a oportunidade de ver igual.
Já como musical, colam nos tímpanos as músicas cantadas por Deneuve ou pelo seu papagaio de estimação - aliás é dele o maior "hit" do filme. Músicas leves na sonoridade - verniz -, com resultado bastante datado, mas que não desagradam; letras que tem o que dizer, por trás da aparente ingenuidade - nódulos, cupins. Faixas, aliás, compostas pelo grande Michel Legrand, repetindo mais uma vez a parceria de Guarda-Chuvas do Amor.
O filme nos fala de coisas a serem entendidas através de outra chave para a compreensão, por outras vias, por segundas intenções - como num conto de fadas, afinal. Das atitudes ensandecidas e desapegadas que movem almas apaixonadas e desejosas.
Fala até de diferenciações sociais: é bastante interessante o momento em que o príncipe - sim tem um príncipe também, duvidavas? - convoca a todas as donzelas do reino para que provem um pequeno anel a fim de saber a sua origem, e oferecendo como resultado de tal "expedição", casamento e boa vida. Centenas de jovens donzelas comparecem para o evento e são colocadas numa fila que se inicia pelas princesas, seguidas das duquesas, condessas e marquesas. Após, um segundo pelotão: criadas, cozinheiras e arrumadeiras. Parece até coisa de Buñuel ou Altmann.
Curiosamente, tem aparência de ser mais antigo. Tem uma certa cara de anos 1960, com o sistema de cor adotado que as apresenta claras, vibrantes, mas "secas" demais. Filmado com bastante rigor no enquadramento, não se nota nenhuma tomada descuidada - chega a chamar a atenção o cuidado do diretor em não desperdiçar espaços, em não deixar quinas e cantos à toa, centralizando quase que milimetricamente todos elementos dentro das cenas. Um musical deslavadamente feito para os apaixonados e os de boa alma; por sua camada externa e mais superficial.
Cid Nader é editor do site Cinequanon.art.br
Pele de Asno
Peau d´Âne



