A ironia se presta a muitas utilidades; ela fornece ferramentas para lidar com a realidade quando nada mais faz sentido, e para mudar essa realidade quando tudo parece irremediavelmente estagnado. Seu uso reiterado tem minado seu efeito, porém, quando a ironia se torna a primeira e única maneira de engajar criticamente com o mundo na era do cinismo.
Em um filme como Outro Pequeno Favor isso não chega a interditar toda a narrativa, mas certamente desacelera a comédia e mina a ficção. Se a ironia implica uma autoconsciência, e eventualmente leva à neurose - como naquele meme do cara sem amigos no canto da sala enquanto o resto da festa “nem suspeita quem ele é” - isso pode ser testado no reencontro de Blake Lively e Anna Kendrick no filme, ambas meio imobilizadas em cena dada a extrema consciência de si mesmas.
A trama parte cinco anos depois do fim do longa de 2018: Emily (Lively) sai da cadeia e aparece de surpresa no lançamento do livro que Stephanie (Kendrick), agora webcelebridade, escreveu sobre todo o imbróglio do primeiro filme. Emily agora está noiva de um mafioso italiano (Michele Morrone, de 365 Dias) e convida Stephanie para ser sua madrinha. A cerimônia acontecerá na paradisíaca ilha de Capri e o elenco não se demora a chegar para o casamento, mas a trama de fato leva uns 40 minutos para engrenar até que um primeiro assassinato em Capri dê a largada ao whodunit.
A lentidão da trama não significa uma lentidão do texto; Kendrick dispara falas com a típica incontinência verbal que marca sua persona cômica, e a montagem do filme tenta manter o ritmo cortando, um por vez, para os coloridos coadjuvantes que a orbitam. A dinâmica permanece a mesma do primeiro filme, com Kendrick fazendo paralelamente a observadora crítica e a estranha no ninho, enquanto Lively paira em cena como esse totem desafetado de beleza, um figurino extravagante depois do outro. Algo parece que se perdeu na repetição, porém, o que em parte se explica pelo desgaste da fórmula - não apenas da ironia mas do próprio folhetim de mistério.
Para tentar se destacar num cenário do streaming onde variações de Knives Out e White Lotus competem regularmente entre si, o diretor e roteirista Paul Feig ameaça subir o grau do cartunesco e do escândalo. Isso implica uma cena de morte num penhasco à moda Looney Tunes e outra com duas Blake Livelys em cena provocante - mas não muito mais do que isso. Este Outro Pequeno Favor parece mais preocupado em passar na TV como ruído branco compreensível para espectadores desatentos, as tiradas cômicas de Anna Kendrick funcionando como vinhetas ocasionais enquanto o mistério dos assassinatos - que se resolve muito antes do fim do filme - não demanda concatenação.
Dado o desinteresse com que tudo se encena, Paul Feig parece mais disposto a fazer de Outro Pequeno Favor um pequeno anti-filme irônico como reação ao esgotamento desse subgênero do mistério novelesco. Acontece que isso exigiria também um certo compromisso, talvez até maior do que fazer um simples whodunit caricato, e o diretor não encontra verve para assumir de fato qualquer um desses dois projetos. Assim como Steven Soderbergh, Feig prospera nas demandas de produtividade da era do streaming e também terá múltiplos filmes para sair este ano, e se nota o cansaço. O forte do seu cinema, que é exercitar dinâmicas de sororidade e guerras de sexo à moda da antiga comédia screwball, já deu o que podia com Anna Kendrick e Blake Lively em 2018.
Outro Pequeno Favor
Another Simple Favor
Ano: 2025
País: EUA
Classificação: 16 anos
Duração: 120 min
Direção: Paul Feig
Roteiro: Paul Feig
Elenco: Anna Kendrick , Michele Morrone , Allison Janney , Blake Lively
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