Apesar de serem tia e sobrinha, e de morarem na mesma casa em uma reserva indígena no coração dos EUA, existe um abismo entre os universos de Jax (Lily Gladstone) e Roki (Isabel Deroy-Olson). Jax é uma ex-detenta lésbica que se sente mais à vontade em clubes de stripper e ferros-velhos suspeitos do que nas casas e lojas chiques que invade quando quer surrupiar alguma coisa dos brancos ricos incautos; já Roki é uma adolescente delicada, cuja identidade ainda frágil se apóia na feminilidade das roupas e acessórios que são a memória mais forte da sua mãe desaparecida, e na ancestralidade dos rituais de dança de sua tribo - duas coisas que Jax deixou para trás há tempos.
O conflito entre essas duas personagens é o que O Rito da Dança tem de melhor. Obrigadas a conviverem diante da ausência desestabilizadora da mãe de Roki, elas se veem tropeçando no caminho de desenvolver a afeição óbvia, mas abstrata, que sentem uma pela outra em um cuidado mais concreto, mais real. O roteiro de Erica Tremblay e Miciana Alise acha, nesses encontros e desencontros temperados por ternura e confiança inabaláveis (elas nem sempre se entendem, mas sempre se amam), a história tocante da construção de uma família no meio do processo do luto, de duas mulheres se encontrando após perderem uma terceira.
O Rito da Dança também almeja ser um retrato dos espaços de limbo onde o nativo-americano é obrigado a (tentar) sobreviver nos EUA da contemporaneidade. Uma cultura relegada a territórios liminares “reservados” a ela, onde se organiza sem apoio institucional, sempre vai acabar se chocando com o mundo além - e O Rito da Dança quer mostrar que, nessas ocasiões, a humanidade destes sujeitos fica à mercê de uma antipatia pública criada justamente pelo isolamento em que eles subsistem. É por isso que a mídia, a polícia e o governo ficam do lado do avô branco de Roki, Frank (Shea Whigham), quando ele reclama a guarda da neta, agindo rapidamente a favor dele enquanto arrastam os pés para investigar o próprio desaparecimento da mãe da menina.
Há algo de didático nessa parte do filme, no entanto, e não é nem que o roteiro perca de vista a história e os personagens para enveredar em discurso político. O Rito da Dança não é cinema-palanque, felizmente, mas falta a ele um esforço maior de integração dramática, um olhar mais honesto para como os males sociais que ele retrata distorcem o caminho da família nascente em seu centro. Até a direção, também assinada por Erica Tremblay, parece ter dificuldade em encontrar rimas visuais de interesse entre um ponto e outro da história, acabando por escolher uma abordagem superficial de naturalismo - cores mudas, iluminação radiante, ângulos tradicionais - que se recusa a construir significado onde ele poderia existir.
Mas se por um lado Tremblay faz de tudo para esvaziar de potência as imagens do filme, por outro Lily Gladstone luta para encontrar espaços onde pode expressar a sua. A atriz, que gravou O Rito da Dança antes de chegar ao Oscar com sua performance em Assassinos da Lua das Flores, é zelosa com as trepidações de sua personagem diante do luto, da responsabilidade parental, da insegurança econômica e da aceitação social. Sem precisar de expressões afetadas, Gladstone convence como uma mulher que aguenta na pele o cruzamento de múltiplas marginalizações - mas, também, como uma mulher que só está tentando entender como pode cuidar da sobrinha, e de si mesma, tão bem quanto sua irmã conseguia.
Aquele esforço de integração que falta em O Rito da Dança, enfim, está marcado no rosto e no corpo de Gladstone. E a afeição pela personagem íntegra que ela vai construindo durante o filme é quase o bastante para perdoá-lo por seus tropeços.
O Rito da Dança
Fancy Dance
Ano: 2023
País: EUA
Duração: 90 min
Direção: Erica Tremblay
Roteiro: Miciana Alise, Erica Tremblay
Elenco: Shea Whigham , Lily Gladstone , Isabel Deroy-Olson
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