Lá em 2001, a DreamWorks Animation abocanhou uma fatia do mercado de animação, até então quase inteiramente dominado pela Disney/Pixar, com uma aposta arriscada: Shrek. O longa sobre o ogro verde dublado por Mike Myers foi campeão de bilheteria, “roubou” o primeiro Oscar de Melhor Animação da história da premiação das mãos do estúdio do Mickey, e se tornou um dos marcos culturais mais claros do cinema do início do século XXI. Embora também tenha chegado em um momento importante no desenvolvimento técnico da animação 3D, a revolução de Shrek foi mesmo uma revolução narrativa - a partir dele, o desenho animado hollywoodiano do mainstream assumiu com muito mais vontade o seu potencial de entretenimento adulto, sua vocação para sátira de gênero, e certo cinismo na forma como se aproximava dos padrões narrativos esperados do formato.
A própria DreamWorks, é claro, surfou essa onda. Produções como Madagascar, Kung Fu Panda, Bee Movie, Monstros vs. Aliens, Megamente e O Poderoso Chefinho, todas assinadas pelo estúdio fundado por Steven Spielberg, se localizam dentro de um espectro bastante estreito de zombaria adulta, tirando humor da forma como apontam para o absurdo das convenções do gênero em que se localizam (filme de kung fu, ficção científica B, aventura de super-herói, etc). Eles variam, é claro, no quanto fincam os pés nessa posição de comédia cínica, ou cedem um pouco para a sinceridade a fim de conquistar um público mais amplo - normalmente, nos filmes dessa lista que viraram franquias, o investimento emocional vai aumentando conforme as sequências se sucedem.
A receita se tornou tão ubíqua, e tão óbvia, que virou até meme: a “Dreamworks face”, que faz referência ao risinho irônico no rosto de muitos dos protagonistas do estúdio e dos filmes inspirados por ele. Bom, dificilmente você vai encontrar o astro da nova animação da DreamWorks, O Homem-Cão, imitando esse mesmo risinho irônico - não só porque ele não consegue, sendo um cachorro desenhado em traços rudimentares que frequentemente mostra só um lado do rosto para a tela, como também porque o diretor e roteirista Peter Hastings (Beary e os Ursos Caipiras) não está nem um pouco interessado em fazer um filme “espertinho”. De fato, é difícil imaginar de que forma O Homem-Cão poderia se distanciar mais do que já se distancia da fórmula que consagrou a DreamWorks no mercado.
Adaptando os quadrinhos de Dav Pilkey, o longa de Hastings acompanha um policial que é, como já entrega o título, um híbrido de humano e cachorro (resultado de um acidente de trabalho que o filme retrata com toques de humor surreal em sua ágil cena de abertura). O seu arqui inimigo é o gato criminoso Petey (voz de Pete Davidson no original em inglês), cujo último plano inclui a ressurreição de um peixinho maligno e a criação de um clone de si mesmo - mas essa última parte pode voltar para assombrá-lo, uma vez que o jovem gatinho criado pelo processo de clonagem levanta sentimentos paternos inesperados no vilão. O embate entre os dois, por fim, se desenrola tendo como pano de fundo uma cidade que é paródia boba das metrópoles ficcionais criadas por outros quadrinistas de super-heróis.
Daí que todos os marcos geográficos são identificados de forma hilariamente óbvia (“o super laboratório de ciências logo ali”, “o principal hospital da cidade”, “o armazém abandonado e dispensável”), e as características que normalmente identificariam os mocinhos e vilões da história se distorcem decisivamente na direção do ridículo (as invenções do vilão Petey são todas nomeadas com o sufixo “2000”, o chefe de polícia tem um esconderijo secreto em seu escritório que revela só um binóculo minúsculo mantido a sete chaves). Até quando está tirando sarro dos chavões narrativos com os quais esbarra, enfim, o filme o faz de forma deliciosamente inconsequente - se a premissa de O Homem-Cão é basicamente “Robocop para crianças”, então tome aí uma cena do protagonista visitando a casa que ocupava quando humano e descobrindo que sua esposa o superou quase instantaneamente após o acidente.
O roteiro de Hastings, enfim, não sofre por falta de comédia. O bacana é notar que sua sensibilidade humorística é muito mais pueril do que adulta, e isso funciona inteiramente a seu favor. Menos Shrek e mais Apertem os Cintos, o Piloto Sumiu!, este O Homem-Cão está entupido de gags visuais rápidas, e em geral não fica preso a nenhuma piada por tempo o bastante para intelectualizá-la demais, o que por sua vez trabalha em concomitância com a elaboração visual do filme. A aposta, nesse sentido, é não só reproduzir os traços simples de Pilkey - transformados com a adição de uma dimensão quase táctil, que faz os personagens parecerem bonecos de feltro -, como também forçar um dinamismo que inexiste nas HQs, especialmente nas cenas de ação.
Menos rabiscado e mais texturizado do que colegas como Caos Mutante, Aranhaverso e Gato de Botas 2, que têm ditado tendência na animação hollywoodiana, O Homem-Cão encontra assim um território pra lá de confortável entre a fofura e a inovação. E, até por isso, tem mais espaço para adoçar a sua narrativa sobre transformação pessoal e relacionamentos sem se passar por piegas ou manipulativo. A sua simplicidade infantil, longe de ser condescendente, ganha aura de virtude em um cenário ainda dominado pela ideia de que é preciso desacreditar do que é simples para sobreviver em um mundo adulto eminentemente complicado. Como o seu protagonista, O Homem-Cão é incapaz de sorrir de ladinho, como quem sabe mais do que você - ele sempre está te olhando de frente, e sempre tem alguma piada boba para contar.
Ano: 2025
País: Estados Unidos
Duração: 89 min
Direção: Peter Hastings
Roteiro: Peter Hastings
Elenco: Kate Micucci, Lil Rel Howery, Maggie Wheeler, Stephen Root, Pete Davidson, Isla Fisher, Ricky Gervais, Billy Boyd