A grande crítica contra os filmes de Wes Anderson é que eles são puro estilo, com pouca substância. A verdade é que – repletos de artifícios, cronometrados até o milissegundo e transbordando com a assinatura de seu diretor em cada canto da tela – esses filmes mostram Anderson usando todos os seus truques em busca de comunicar emoções peculiarmente humanas, da solidão ao luto, que se revelam em momentos especiais que removem toda a maquiagem. Estes colocam em tela algo cru e verdadeiro, que pode ser difícil de enxergar. Entre seus trabalhos recentes, porém, nenhum tem tanto estilo quanto O Esquema Fenício. E nenhum deixou suas ideias tão óbvias.
O que não quer dizer que O Esquema Fenício confirme a máxima de quem rejeita o cineasta de O Grande Hotel Budapeste e Asteroid City, mas essa ideia ganhará força, já que os minutos iniciais de sua nova casa de bonecas figuram entre os mais frenéticos, incessantes e chocantes que ele já dirigiu. Não é um exagero: um corpo explode pela metade com menos de cinco minutos de filme. A bomba responsável por esse banho de sangue tinha a missão de derrubar o avião de Zsa-Zsa Korda (Benicio del Toro), um dos homens mais ricos do mundo que frustra americanos e soviéticos na mesma medida com seus acordos sem precedentes, contratos que só são aceitos porque a margem de lucro do magnata nunca é maior do que 5%. Com o passar dos anos, porém, sua já considerável fortuna só não cresceu mais do que o número de tentativas de assassinato contra sua pessoa. Quando ele sai do milharal onde seu avião cai, Zsa-Zsa celebra ter sobrevivido seu sexto acidente aéreo.
Por alguma razão, porém, essa vez foi diferente. Talvez devido à morte brutal de seu assistente ou talvez devido à visão que ele tem de um julgamento no céu (onde, claro, Deus e os anjos são vividos por figuras como Bill Murray, Willem Dafoe, F. Murray Abraham e outros nomes conhecidos da trupe Wes), Zsa-Zsa decide escolher um herdeiro entre seus 10 filhos e arquiteta um esquema tão impossível quanto custoso, mas que se der certo, garantirá seu lugar entre os anais da história. A escolhida é a única filha entre os candidatos em potencial. Liesl (Mia Threapleton) é uma noviça que não só está perto de virar uma freira, como também fica enojada com as práticas do pai, que vão de quesionávies (como manter os outros 9 filhos num dormitório em frente à sua mansão) a repreensíveis (como usar trabalho escravo e arquitetar fomes). Estamos falando de um homem acusado de matar todas as ex-esposas e uma menina que acredita na busca pela pureza. Em teoria, não há combinação pior.
Talvez ciente disso, tanto Zsa-Zsa quanto Liesl declaram a jornada que se inicia logo depois de seu primeiro encontro em anos como um “período de teste.” Neste, os dois viajam pelo globo para tentar trazer à vida o plano final do bilionário, um que é complicado pela manipulação mercadológica arquitetada pela força política internacional liderada pelo burocrata-espião Excalibur (Rupert Friend). Diante do risco de perder tudo, Zsa-Zsa e Liesl precisam convencer os parceiros nada confiáveis de Korda a aceitar um novo contrato. Essa viagem, claro, é recheada de rostos familiares da filmografia de Anderson. Tom Hanks e Scarlett Johansson retornam de Asteroid City, Benedict Cumberbatch troca o bigode de Henry Sugar por uma barba bíblica, e Bryan Cranston, Mathieu Amalric, Jeffrey Wright e Richard Ayoade também estão de volta, ajudando a trazer à vida um dos roteiros mais engraçados e direto ao ponto que Wes e seu colega de escrita Roman Coppola bolaram.
A maior parte das risadas, porém, vem de um novato cuja estreia faz parecer que ele nasceu para viver um personagem de Wes Anderson: Michael Cera é hilário como Bjorn, um tutor contratado por Zsa-Zsa que se vê acidentalmente promovido a assistente, esconde segredos e é apenas um dos personagens apaixonados instantaneamente por Liesl (sua paixão, pelo menos, parece genuína; o Príncipe Farouk de Riz Ahmed, outro calouro, pode ter o dinheiro da herdeira em mente). Fonte constante de riso, ele se torna o terceiro membro da equipe formada pelo pai e filha, e apesar de não ter o mesmo impacto emocional de algo como Steve Zissou ou Tenenbaums, Anderson novamente bola uma narrativa paternal eficaz. Eventualmente, fica claro que Zsa-Zsa terá que escolher o que é mais importante: família ou dinheiro.
Mesmo sem a mesma profundidade narrativa de seus outros títulos, o diretor consegue – com assistência valiosa de Del Toro e Threapleton, cuja química serve como combustível para abastecer todo o Esquema – encenar um relacionamento genuíno, e nos vemos torcendo pelo bem estar dos dois ativamente. Mas por mais que isso esteja ali, O Esquema Fenício sugere um Wes Anderson mais interessado em gênero e sequências de visuais criativos do que, digamos, no coração da história.
Os filmes de Wes Anderson bolam um grande vai-e-vem cinematográfico que, por trás de todas as artimanhas e engenhocas, buscam preparar um momento perfeito, onde a linguagem bressoniana das atuações abre espaço para o mais naturalista e as engrenagens pausam para que os personagens expressem seus mais íntimos sentimentos. Pense no discurso de Jeffrey Wright em A Crônica Francesa, no encontro com Margot Robbie em Asteroid City ou em quando o Zero de F. Murray Abraham finalmente conta porque comprou o estabelecimento que dá nome a O Grande Hotel Budapeste. Todo o estilo existe em nome de uma substância.
Aqui, Anderson parece ter se apaixonado pela ideia de fazer seu filme de ação. A vantagem é que essa ideia vai abater outra crítica comumente direcionada ao cineasta: a de que ele sempre faz o mesmo filme. Comparações com o gênero de espionagem não serão acidentais: há guerrilhas na selva, lutas violentas e assaltos esperando por Zsa-Zsa e Liesl em seu percurso, e O Esquema Fenício mal tira tempo para respirar no meio desse corre-corre. Mas não para por aí. A cada cena, somos testemunhas de como seria algo dirigido por Wes Anderson, sem precisar recorrer a péssimas imitações de IA. Já imaginou como seria se ele fizesse seu Top Gun? Ou dirigisse um longa esportivo onde tudo depende da última cesta de basquete? Eu adicionaria um projeto de restaurante aos exemplos, mas O Esquema Fenício está longe de ser o primeiro de seus lançamentos que inclui ótimas cenas entre mesas e cozinhas.
É claro que tudo isso, nas mãos de um cineasta cuja identidade é tão identificável que seu nome se tornou algo reconhecido fora dos círculos mais cinéfilos, vem com uma carga lúdica de criatividade, com ritmos próprios e algumas das melhores piadas que ele já colocou em tela. É só uma pena que o interior dessa caixa de chocolates tenha sido tão sacrificado no processo.
O Esquema Fenício
The Phoenician Scheme
Ano: 2025
País: EUA
Classificação: 14 anos
Duração: 101 min
Direção: Wes Anderson
Roteiro: Roman Coppola, Wes Anderson
Elenco: Michael Cera , Mathieu Amalric , Richard Ayoade , Scarlett Johansson , Benicio del Toro , Willem Dafoe , Rupert Friend , Benedict Cumberbatch , Jeffrey Wright , Mia Threapleton , Riz Ahmed , Bill Murray , Tom Hanks , F. Murray Abraham , Charlotte Gainsbourg , Bryan Cranston
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