A indistinção entre documentário e ficção, um tema constante no cinema brasileiro na última década, está no centro da produção do coletivo Teia desde a sua criação, em 2003. Filmes como o recente Girimunho, que esteve em Veneza neste ano, e A Falta que Me Faz, que teve lançamento discreto nas capitais e hoje passa no Canal Brasil, testam os limites e os cruzamentos desses dois gêneros.
o céu sobre os ombros
o céu sobre os ombros
o céu sobre os ombros
É um processo que não se esgota porque os filmes da Teia têm em comum uma eterna procura: seguem personagens em busca de um espaço e um tempo que lhe sejam próprios, personagens atrás de pertencimento. Autoficção, uma palavra bastante recorrente quando se discutem os docudramas brasileiros, é termo apropriado à obra do coletivo: são filmes com gente "real" que diariamente formula "ficções" nessa busca por estar no mundo.
O premiado O Céu Sobre os Ombros talvez seja o filme mais acessível da Teia porque lida com a autoficção de uma forma quase literal. De seus três protagonistas - a transexual Everlyn Barbin, o atendente de telemarketing Murari Krishna e o escritor Edjucu "Lwei" Moio - dois deles se expressam, ou tentam se expressar, no papel. A angústia de verbalizar o que se vive e o que se sente está então, nos aspirantes a escritores Everlyn e Lwei, em um outro estágio de articulação.
Isso não significa que O Céu Sobre os Ombros seja menos complexo que os outros filmes do coletivo, ou que o drama com que esses personagens lidam não se reflita em interiorização. A escrita é apenas uma das formas de exteriorizar necessidades. O início do filme dá a entender que as questões de cada um são muito particulares - a de Murari, espiritual; a de Lwei, intelectual; a de Everlyn, afetiva - mas nada é tão simples na realidade (ou na boa ficção).
Pode parecer aqui que a Teia opera pensando na unidade em seus filmes, o que seria uma grande injustiça com seus cineastas, mas o fato é que O Céu Sobre os Ombros funciona muito bem como narrativa e como olhar sobre a realidade porque consegue aglutinar vários talentos individuais. É um filme dificílimo de ser feito com o naturalismo que se propõe (a câmera segue Everlyn trabalhando como prostituta, Murari no estádio de futebol), e o diretor Sérgio Borges tem no diretor de fotografia Ivo Lopes Araújo e no montador Ricardo Pretti - cearenses que lançam seus curtas e longas por outro coletivo, o da produtora Alumbramento de Fortaleza - duas ajudas fundamentais.
É com eles que Borges consegue dar forma ao peso inexplicável do tal céu sobre os ombros. Articular angústias, afinal, não é uma busca apenas dos personagens, mas também dos realizadores. A câmera está sempre próxima dos corpos dos "atores" para ver na pele reflexos desses problemas invisíveis, e quando se afasta (como nas cenas dentro da empresa de telemarketing de Murari) é pra resgatar um contexto, situar esses corpos. Não é fácil entender o mal-estar que se abate sobre quem vive em nossas cidades - a frase do cliente de Everlyn, que quer "dar uma trepada, esquecer um pouco esse mundo", nunca fez tanto sentido - e O Céu Sobre os Ombros busca identificar na paisagem urbana que mal-estar é esse.
Por mais que pareça abrupto, o final do filme é certeiro. Primeiro, porque é impossível encontrar uma resposta definitiva para os dilemas que o filme sugere - mesmo porque esses dilemas não estão sempre claros. Segundo, porque cada um dos protagonistas encontra, no desfecho, uma conformação mínima que seja para aquilo que os aflige - inclusive Murari, que, embora não se apresente como escritor, também experimenta a escrita como escape.
O verbo é o elemento central de O Céu Sobre os Ombros, enfim, seja um mantra, o canto de uma torcida de futebol, um pixo ou uma discussão de mesa de bar - e por meio dele é possível o entendimento. A falta do verbo, inclusive, está na fonte do drama de Lwei: a desarticulação do filho. Nesse sentido, Borges faz um filme abertamente intelectualizado - a cura pela fala, de que a psicanálise trata - e ao mesmo tempo absolutamente sensorial, no seu olhar desafetado, sem pudor e sem julgamentos diante de tudo aquilo que vê.
O Céu Sobre os Ombros | Cinemas e horários
Ano: 2010
País: Brasil
Classificação: 16 anos
Duração: 92 min
Direção: Sérgio Borges