Na Teia da Aranha faz da obsessão pelo cinema só mais uma mesquinhez humana
Na contramão de glorificar a arte, Kim Jee-woon faz humor patético com seus artistas
Créditos da imagem: Song Kang-ho em Na Teia da Aranha (Reprodução)
Se você só liga para o trabalho, as pessoas ao seu redor também só ligarão para você no que tange ao trabalho. Essa parece ser a lição mais concreta de Na Teia da Aranha, comédia cáustica de bastidores que o diretor sul-coreano Kim Jee-woon (Eu Vi o Diabo) lança nos cinemas brasileiros quase dois anos depois de sua estreia no Festival de Cannes 2023. A aproximação com o humor é novidade na filmografia do cineasta, que ficou famoso por suspenses e thrillers de ação densos que fizeram parte de uma revitalização do cinema sul-coreano durante os anos 2000 - ele é da mesma geração que revelou os talentos de Park Chan-wook e Bong Joon-ho para o mundo, por exemplo.
Talvez seja a pressão dessa notoriedade que tenha feito o diretor Kim murchar um pouco conforme os anos e as décadas se sucederam. Na Teia da Aranha marcou o seu retorno aos cinemas após um hiato de cinco anos - em 2018, o fracasso do sci-fi Ilang: A Brigada Lobo entre o público e a crítica foi um raro revés na carreira do cineasta. Na TV, a sua Dr. Brain (2021) também não emplacou o bastante para configurar um comeback, e a morte do protagonista Lee Sun-kyun pouco depois do lançamento lhe deu uma aura de obra maldita e interminada. Kim, enfim, estava encurralado, admoestado a provar novamente o seu valor para uma indústria que ele ajudou a transformar. A saída, para ele, parece ter sido uma comédia que trivializa essa mesma indústria.
Não à toa, o protagonista cineasta de Na Teia da Aranha, vivido por Song Kang-ho (Parasita), divide o sobrenome com o autor do filme. O diretor Kim da história acaba de terminar um novo longa, mas é assombrado por visões e sonhos malucos que parecem lhe suplicar por refilmagens, a fim de mudar completamente o desfecho da produção. Quando ele leva a proposta para o estúdio que bancou o filme, mil problemas se apresentam: as agendas dos atores, incluindo uma jovem estrela (Krystal Jung) que está filmando uma novela; a aprovação da censura, muito rígida na Coreia do Sul dos anos 1970, em plena pela ditadura militar; o fato de que ninguém realmente parece entender o novo final; o burburinho dos críticos, que acreditam que Kim nunca vai conseguir igualar o seu elogiado filme de estreia; e por aí vai.
Na Teia da Aranha brinca com a estrutura do “filme-dentro-do-filme”, nos mostrando cenas em preto e branco da produção que o protagonista está filmando entrecortadas com a encenação em cores do drama de bastidores, mas evita traçar paralelos muito óbvios entre as duas histórias que vemos em tela. De fato, o roteiro assinado por Kim Jee-woon e Shin Yeon-shick (Tio Samsik) usa o estilo ultra-dramático e a aproximação com o exploitation que marca o filme produzido pelos personagens como mais uma parte da piada. Na Teia da Aranha quer nos fazer rir da pretensão que essas pessoas demonstram, convencidos de que estão fazendo uma obra-prima histórica quando na verdade seu filme se encaixaria melhor na sessão da meia-noite de algum cineminha capenga de meados do século passado, ao lado de um serial reaproveitado do Flash Gordon.
Não que esse tipo de arte pulp não tenha seu valor, é claro. A fotografia de Kim Ji-yong (colaborador frequente não só de Kim, mas também de Park Chan-wook) e a direção de arte de Jeong Yi-jin (O Motorista de Táxi) apostam no barroco e no grotesco - iluminações dramáticas sempre destacam olhos expressivos e cabelos ensebados, o quarto de um doente é decorado com apetrechos hospitalares pendurados no teto, um vitral fragmentado é filmado em close-up extremo enquanto a protagonista invade o segundo andar da casa pela varanda. Frequentemente, as cenas de Na Teia da Aranha que mais demonstram energia criativa são justamente as do “filme-dentro-do-filme”, e o novo final amargo que o protagonista advoga para a história tem medidas iguais de apelo camp e genuíno horror.
Diante disso, parece que a ideia do longa é mesmo nos mostrar o que pode nascer do cinema mais entregue aos chavões de gênero, mais aparentemente desprovido de grande inspiração dramática. Kim Jee-woon glorifica, sim, os desafios técnicos que seus personagens se propõem, a magia que tentam fazer diante de mil impedimentos humanos, mas também vê quão patéticos eles são ao se agarrarem a essa arte como se sua vida dependesse disso. É fútil, afinal, se segurar tão obstinadamente ao controle em um meio onde o controle é impossível. O cinema, e especialmente o cinema de gênero, só ganha vida mesmo ao se infiltrar no imaginário do público, quando os criadores já não podem fazer muita coisa para direcionar o destino de suas obras.
Mas, se é assim, porque tantos artistas continuam se atirando ao abismo de suas próprias pretensões? Porque pendurar tanto da sua reputação, e do seu amor próprio, no que as pessoas vão fazer com seu trabalho uma vez que você o perde? A resposta é só uma: nós, humanos, somos mesquinhos assim mesmo. O barato de Na Teia da Aranha é ver um artista simultaneamente dando os ombros e o dedo do meio para essa mesquinhez.
Na Teia da Aranha
Geomijip
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