Às vezes somos lembrados, mesmo quando não tem nada a ver com o assunto, que filmes e games são realmente duas expressões distintas, e quando uma emula a outra o ruído é perceptível.
A adaptação ao cinema da série literária Mundo em Caos, por exemplo, começa com uma linguagem bem gamificada: Tom Holland transita num mundo semisselvagem com a câmera orbitando seu corpo, simulando uma perspectiva de primeira pessoa (inscrita tanto na imagem quando na voz dele em off), enquanto conhecemos com o protagonista os locais e limites do vilarejo onde ele mora. Nesse passeio resumido, surgem diante de Holland cinco personagens em uns 15 minutos, e a forma sintetizada como o filme os apresenta deixa bem claro: o que os define é o olhar do protagonista e como esses coadjuvantes interagem com ele a partir dali.
Se a direção de Doug Liman aproxima o filme dos jogos, a premissa intensifica isso. Em Mundo em Caos, a trama de ficção científica futurista diz que os colonos terráqueos desse planeta misterioso são marcados por uma peculiaridade: seus pensamentos se materializam no ar, e é possível ver esses pensamentos e ouvi-los em voz alta. Holland ouvirá então toda a cacofonia de vozes da qual faz parte e não consegue se isolar. Ora, na analogia com games, é como se todos os coadjuvantes que o cercam fossem NPCs (de “personagens não-jogáveis”) falantes de um RPG, com suas demandas paralelas, sem mistério, ditas em alto e bom som. Basta escolher a qual dar atenção.
Já logo de cara, então, o filme se posiciona muito claramente como uma narrativa individualizada: as jornadas dos coadjuvantes só existem em função do protagonista, porque sem ele - ou seja, sem a aproximação da câmera do jogador - essas histórias não seriam notadas e ouvidas, elas praticamente não existiriam, e o que desperta outras vozes no filme com frequência é o ruído do próprio herói.
Obviamente, toda narrativa precisa eleger um ponto-de-vista, organizar vozes, hierarquizar seus personagens. O caso é que Mundo em Caos faz disso uma coisa tão literal que é como enxergar - nas névoas que envolvem as cabeças dos atores - a matrix de zeros e uns que formam as contações de histórias. A premissa do filme, inclusive, deixa pouco espaço para a criação ativa do espectador, porque no voice-over Holland sempre se antecipa falando sobre o que vê, o que aconteceu e o que sente. Sobra pouco espaço para subtexto num filme onde absolutamente tudo vira texto, até a própria gramática do cinema.
Sem mistérios no horizonte da narrativa, sobra à nossa jornada ao lado de Tom Holland apenas as tarefas mecanizadas: seguir adiante, conduzir a donzela, atravessar o terreno hostil, desmascarar os antagonistas. Por que as linguagens de filmes e jogos causam estranheza quando se encontram? Por que não temos agência sobre como Tom Holland vai se mover, tomar decisões, ter encontros e conversar com estranhos. Embora se comporte como um game, Mundo em Caos é um filme e, como tal, estamos presos de modo passivo à perspectiva que se escolhe para nós - e isso pode ser altamente frustrante num filme que não sabe oferecer nada além da gamificação.
Para ser justo, Liman oferece, sim, uma coisa que é extrafilme: um caso de estudo sobre o privilégio, porque o que fica evidente aos poucos é que estamos diante de uma colossal situação de narcisismo. Todo um blockbuster de distopia scifi é construído em torno do dilema de como um garoto vai se comunicar com a garota pela qual se descobre apaixonado; o ponto de vista do protagonista não apenas é selecionado para nos conduzir, como também tudo o que é potencialmente instigante na alteridade desse mundo - o papel dos aliens, o olhar da garota estrangeira, a dinâmica entre colonos e astronautas - tem sua importância reduzida para que o herói primeiro resolva o seu problema de autoimagem. É sintomático que Tom Holland tire a roupa sem pudor, sem pensar muito sobre isso, porque o personagem, apesar de seus complexos de comunicação, não problematiza a própria nudez e “entende” que seu corpo é um objeto a serviço da ação, instrumentalizado no “jogo”.
No fim, além de evidenciar essa crise de linguagem dos games que sonham em ser cinema e dos filmes que tentam ser jogos, talvez Mundo em Caos tenha algo a dizer também sobre a literatura para jovens adultos que prospera em Hollywood, aquela que trivializa a potência de especulação da ficção científica para manter seus leitores na bolha confortável da supervalorização do ego. Não é a primeira vez que Doug Liman transita por esse terreno - em alguma medida, Jumper e No Limite do Amanhã também ofereciam universos de scifi organizados pelas regras do boy-meets-girl e do olhar masculino - mas talvez seja a primeira em que essa receita atinge estado de crise.
Ano: 2021
País: EUA
Duração: 109 min
Direção: Doug Liman
Roteiro: Christopher Ford, Patrick Ness
Elenco: Tom Holland, Cynthia Erivo, Daisy Ridley, Mads Mikkelsen, Demián Bichir, Nick Jonas, David Oyelowo