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Existem filmes que fazem questão de não se encaixar em nenhum gênero. Mulheres do Brasil, dirigido por Malu de Martino, é um bom exemplo. A cena inicial de abertura, em que uma coleção de pés femininos recebe um recapeamento ilustrativo a partir das imagens fotográficas originais, deixa dúvidas se o mergulho primeiro é debaixo de um tratado de arte ou de um retrato pitoresco do povo brasileiro. Talvez seja a melhor cena do filme. A podolatria exagerada funciona como uma representação metonímica de um conjunto étnico específico e ao mesmo tempo não identificado. Rostos ocultos no meio da multidão dando lugar à força do solo do pau-brasil. Unhas pintadas e pares de hastes de carne bronzeadas e torneadas fincando sua conquista lunar neste país tão vasto, tão pobre e tão machista. Se este emolduramento passe-partout foi intencional ou se foi obra do acaso é difícil supor. O resultado, destoante do restante do trabalho, desperta um certo interesse não correspondido no decorrer de uma seqüência de tropeços.
Bem intencionado ele é. Mulheres do Brasil mistura ficção e documentário. Traça paralelos entre um gênero e outro. Personagens que recebem um tratamento dramático ficcional são corroborados em suas verdades com depoimentos reais, crus e desdentados da família feminina brasileira. O problema é que essa migração fica didática demais. O filme exagera nos estereótipos tanto da fração romanceada quanto do olhar-repórter documental. A conseqüência disso é que essa intercalação dúbia e amalgamada em sua proposta assemelha-se ao quadro-brincadeira do Fantástico que tem Denise Fraga achincalhando uma história real contada em missivas ingênuas e semi-analfabetas.
Mais ainda: a diretora demonstra um olhar correto e apurado ao captar as cenas cotidianas do Brasil real, mas dilui sua intensidade na mixórdia caricata e panfletária. Existe sim um país múltiplo em suas culturas e seu folclore. Uma imensidão geográfica e uma densidade populacional que chegam até a se contradizer. A câmera plural ora faz ecos na aridez das aspirinas e dos urubus, ora se espreme no turbilhão megalopólico economicamente desenvolvido. O registro demográfico abordado em Mulheres do Brasil quase obriga a criação de um novo dicionário só de dialetos esquecidos pela norma culta. Mas abrangência não quer dizer riqueza. Malu de Martino vai do Oiapoque ao Chuí pra realizar seu contento, todavia esbarra nas fórmulas globais folhetinescas de convívio com seus personagens. Atores parecem estar dublando a si mesmos. O sotaque milimetricamente arrastado e cuidadosamente cantado soa hipócrita diante do improviso cotidiano da realidade das palafitas e dos flats. A película vai minguando em suas pretensões à medida que tenta abraçar a grandeza varonil desse semicontinente. Trata-se de uma compilação de cinco histórias de escritoras brasileiras, de Maceió a Curitiba, de Bom Jesus da Lapa a Rio de Janeiro e São Paulo. São fragmentos romanceados, enclausurados em seus umbigos, que não estabelecem um diálogo entre si a não ser pela heterogenia biológica e pelos paradoxos culturais. A trilha sonora que pontua essa caracterização escolar vai do regionalismo pop de Fagner e Moraes Moreira ao atordoante MPB-cabeça baticum que toca nos descolados inferninhos das grandes cidades.
Ainda perdido no meio de tanta informação genética e incoerente em suas conclusões dissertativas, o filme estabelece como norma de regência o sadismo de uma ironia leviana. Há uma força danada pra se encontrar humor onde ele não existe e um desperdício inevitável ao não saber enxergar em que direção de fato localiza-se esta graça feminina. Entrevistar prostitutas e solteironas iludidas com uma voz de rádio sintetiza esse raciocínio. Claro que em nenhum momento se pede um olhar de compaixão a essas categorias venusianas. Mas o problema é que Mulheres do Brasil se aproveita da coleta desse material caboclo e traça uma narrativa sórdida. Debaixo desse caldo cultural com sua tez miscigenada sobra apenas a mesmice dramatúrgica simplória das telenovelas. E, convenhamos, tanto o nosso país quanto o nosso cinema são muito mais extensos que isso.
Érico Fuks é editor do site cinequanon
Ano: 2006
País: Brasil
Classificação: LIVRE
Duração: 113 min