Não é apenas o luto recente que está afetando a cabeça da viúva Ramona (Danielle Deadwyler) em A Mulher no Jardim. Num flashback central de virada da trama, ela revela que deixar a cidade com os dois filhos e morar num casarão isolado no campo, iniciativa que partira do marido dela, está longe de ser a escolha que Ramona teria feito sozinha.
Esse tropo da mudança cidade-campo ou cidade-subúrbio assombra desde sempre os filmes de terror que vieram na esteira do perigo nuclear da Guerra Fria; há todo um subgênero calcado na falsa sensação de segurança que a vida na natureza ou no isolamento pode oferecer aos americanos que se alienam das metrópoles. A Mulher no Jardim não oferece novidade nesse sentido, mas colocar uma família negra para encenar uma história carregada de imagens do Gótico Americano empresta, sim, alguma particularidade ao filme de Jaume Collet-Serra.
No folclore da vida rural americana, que abastece esse tipo específico de escola gótica, nunca coube ao negro ocupar a residência principal de uma propriedade de época. Então quando surge uma mulher vestida toda de preto na janela de Ramona - a ameaça sobrenatural do filme já anuncia de início ser uma manifestação do luto da protagonista - ela pode ser lida também como uma lembrança desse histórico deslocamento racial. Pelo menos desde que Jordan Peele ambientou seu Corra! num típico casarão de subúrbio, cada vez mais a narrativa negra ocupa esse espaço através do cisma; A Mulher no Jardim agora toma não apenas o espaço mas também o imaginário como um todo.
Isso significa, para fins de impacto, que as imagens de Collet-Serra nos lembrarão sempre das sombras e dos ângulos que perfazem o gótico. Antes de se levantar de sua cadeira no jardim, a Mulher de Preto primeiro se projeta como sombra em ângulo agudo, sobre o gramado e depois sobre a residência, até chegar à janela única do sótão - emblema máximo do Gótico Americano na pintura de Grant Wood (1891-1942) que nomeou e consagrou esse movimento. Derrotar a Morte pode representar para Ramona uma vitória também sobre a História, dado que a narrativa da residência gótica sulista é sempre uma narrativa de ruína - ecos de O Som e a Fúria, romance contemporâneo de Wood - e essa ruína (que no filme o falecido marido prometia remediar antes de morrer, numa literalização da alegoria) precede a história de Ramona.
Os créditos finais de A Mulher no Jardim falam sobre prevenção ao suicídio; é mais um filme de massa americano a lidar com saúde mental como o grande tema dos nossos tempos, preocupação que até os filmes de super-herói tomaram para si. O diferencial do terror de A Mulher no Jardim é que não necessariamente se individualizam responsabilidades e pesos da depressão, na medida em que ela espelha também um desarranjo histórico do pacto social. Somos convidados enquanto coletividade, portanto, a compartilhar com Ramona sua dor e sua luta, conscientes do que ela representa para além do jardim da família.
Nesse sentido da expiação coletiva, Collet-Serra faz aqui não apenas um exercício de constrição - sua especialidade em filmes ditados pelos limites do espaço e da premissa, como Águas Rasas (2016), o recente Bagagem de Risco (2024) e os longas com Liam Neeson - mas principalmente um terror de redenção à moda Shyamalan. A Mulher no Jardim não está falando de religião propriamente, como Sinais (2001) ou Batem à Porta (2023), e inclusive Ramona parece agir como uma pessoa ateia ou agnóstica quando confrontada pela morte, esboçando no momento de pavor uma reza de forma inaudível. Ainda assim, é de crença que se trata, na medida em que a personagem cria para si uma narrativa que “mude as partes assustadoras”, como ela diz, e seja capaz de redimir a realidade. Um ato de fé.
Tudo isso opera em A Mulher no Jardim um efeito de elevar o filme. De certo modo, e como bom artesão, Jaume Collet-Serra está mais preocupado nos jumpscares e em resolver as restrições de espaço que impõe para si na encenação - ele faz isso com todo o arsenal de chicotes de câmera, filtros de luz e inversões de eixo de que consegue dispor. O que faz o filme transcender essa operação básica, porém, literal e metaforicamente, e se libertar da constrição, é justamente o convite ao registro histórico-coletivo.
A Mulher no Jardim
The Woman in the Yard
Ano: 2025
País: Estados Unidos
Classificação: 16 anos
Duração: 1h28 min
Direção: Jaume Collet-Serra
Elenco: Danielle Deadwyler
Comentários ()
Os comentários são moderados e caso viole nossos Termos e Condições de uso, o comentário será excluído. A persistência na violação acarretará em um banimento da sua conta.
Faça login no Omelete e participe dos comentários