Marty Supreme celebra o errático na jornada judaica com Timothée Chalamet
Josh Safdie enquadra seu cinema de frenesi em moldura monumental
Créditos da imagem: A24
Marty Supreme transcorre ao longo de nove meses. É possível precisar porque assistimos a uma gestação acontecer, enquanto o protagonista Marty Mauser, interpretado por Timothée Chalamet, corre de um lado para o outro driblando desastres e apuros na luta por ser reconhecido o maior jogador de tênis de mesa do planeta. Não fosse a gestação, certamente perderíamos a noção do tempo neste filme que parece conter, de forma frenética e exponencial, a história de uma vida inteira.
Então agora sabemos, dentre os irmãos Safdie, qual deles tem mais apreço pelo frenesi. Josh e Benny primeiro trabalharam como diretor/montador e depois dirigiram juntos os filmes que revigoraram o cinema independente americano tributário da energia caótica de John Cassavetes (1929-1989). Depois de Bom Comportamento (2017) e Joias Brutas (2019), porém, os Safdie se separaram; o caçula Benny dirigiu Dwayne Johnson em Coração de Lutador neste ano, enquanto Josh assina sozinho este Marty Supreme. São dois filmes sobre o triunfalismo americano organizados em torno de torneios esportivos, mas a exemplo da intensidade (que Josh continua trabalhando prazerosa e obsessivamente como código de comédia de erros, enquanto Benny internaliza no tumulto mental de seu protagonista) Coração de Lutador e Marty Supreme não poderiam ser mais distintos em relação a onde querem chegar.
Para Benny, toda a narrativa do excepcionalismo americano se equilibra precariamente em cima de uma ilusão. Seu Coração de Lutador denuncia a amarga frustração com o sonho na medida em que escolhe desespetacularizar o esporte (o MMA em si já não é a coisa mais cinematográfica do mundo, o que em parte explica a escolha por esse tema e por filmar as lutas do lado de fora do ringue). Já Marty Supreme faz do ping-pong não apenas o clímax eletrizante de sua experiência de fluxo (toda a troca de Chalamet com seus rivais é criada em convincente computação gráfica) como as cenas do esporte se prestam a canalizar a energia espalhada pelo filme em um único ponto. A mesa não como retângulo, mas como funil.
Onde fica a narrativa americana nisso? Bem, Josh Safdie não nega que o sonho é uma fabricação, e justamente por isso seu Marty Mauser precisa construi-lo sem descanso, a cada encontro de acaso pelo Lower East Side, uma das muitas vizinhanças de Nova York onde imigrantes, junto com seus filhos e netos, procuram e inventam sua identidade dia após dia. De todos os filmes dos Safdie rodados em locação pelas calçadas de Manhattan – uma escolha em busca do documental que sempre justificou o frenesi, para além da conveniência logística – este Marty Supreme é o primeiro que tem a ambição do registro monumental: não apenas eleger mais um pária urbano como anti-herói errante mas fazer de Marty Mauser símbolo do seu povo.
A cruz do individualismo
Se vivo estivesse, Philip Roth talvez se enxergasse em Marty Supreme. Morto em 2018, o escritor americano não testemunhou a resposta desproporcional de Israel ao 7 de outubro de 2023, mas de qualquer forma já criticava em ensaios, no começo dos anos 1960, a conversão do judeu num “herói cultural” e “patriota guerreiro e beligerante”, nas palavras de Roth. O autor de O Complexo de Portnoy foi acusado de trairagem e antissemitismo antes de ser reconhecido, com os anos, um dos grandes autores judeus da América; Roth enxergava o judeu arquetípico não como o diligente portador das virtudes e dos costumes do seu povo, mas como o ser humano contraditório a quem cabe responder, individualmente, por toda a saga da jornada judaica, e por sua perpetuação. Do peso dessa cobrança vem, aí sim, o que a gente talvez possa chamar aqui de excepcionalismo.
Josh Safdie entende o potencial dramático dessa cruz, e parte dela para justificar a sua narrativa do sonho americano. Desde o primeiro instante seu protagonista foge das responsabilidades coletivas que lhe cabem, afinal Marty precisa focar nos seus treinos de mesatenista, como um bom aspirante a vencedor. Tanto os apuros que Chalamet enfrenta no filme quanto as oportunidades de alpinismo social que ele vislumbra decorrem do seu individualismo. Trata-se de uma questão de sobrevivência acima de tudo: cada judeu é a sua própria pátria. No corre-corre de Marty Supreme, Safdie não apenas eleva seus filmes ao registro monumental como passa a tratar o moto perpétuo por Nova York como a própria expressão da diáspora.
Não há dúvidas de que as responsabilidades serão cobradas, afinal Marty Mauser carrega no próprio nome a marca do judeu (a semelhança “Mauser/mouse” evoca o Maus de Art Spiegelman, que por sua vez ironiza as peças nazistas de propaganda do cinema alemão que tratavam judeus como ratos). Em reação ao estereótipo racista, Marty abraça sua vocação para ser o maior dos párias: entrega-se de imediato à pulsão sexual, faz piada sobre o Holocausto, renega a família nova e desonra a família velha. Em última instância – citando Philip Roth mais uma vez, quando o autor descreveu o personagem egoísta e aproveitador Sheldon Grossbart do seu conto O Defensor da Fé (1959) – o que Marty está fazendo é ser um judeu que age como o estereótipo do judeu, e com isso “responder à punição com o crime”.
O anti-Brutalista
Na temporada do Oscar de 2026, é provável que Marty Supreme encontre um rival em Uma Batalha Após a Outra; ambos os filmes oferecem a narrativa do frenesi em chave cômica como uma questão quase filosófica. Uma comparação mais apropriada aqui, porém, é com O Brutalista, o drama monumental de saga judaica que Adrien Brody protagonizou em 2024. O arquiteto László Tóth de Brody personifica o “herói cultural” que Roth criticava, um judeu absolutamente ciente do fardo da sobrevivência, da Mensagem, que se percebe incapaz de transar com a esposa dado que assombrado pela perpetuação do seu povo. Marty é transante e não tem esse problema, em absoluto: o espectador descobre isso logo nos créditos iniciais.
Com isso, Josh Safdie não está agindo como se a imagem do judeu virtuoso não existisse. Seu filme inclusive opera com variações dos tropos consagrados dessas narrativas; por exemplo, colocar Marty ao lado de um amigo gentio de classe média (vivido por Tyler the Creator), recurso consagrado para ressaltar as liberdades dos góis que os judeus jovens são interditados de viver. Juntos, porém, eles não sofrem interdição prévia alguma. Chalamet e Tyler são mais uma dupla de pantomima, unidos por conveniência para tornar a comédia física mais robusta, do que necessariamente faces no espelho de suas diferenças.
Subverter as regras não impede que Marty Supreme passe pelas dolorosas realidades da experiência judaica. Assim como O Brutalista interrompe o sonho com uma violência hedionda, Marty Supreme também sujeita seu protagonista a um momento que o coloca “em seu devido lugar”. A humilhação física é encenada por Safdie de forma sofisticada porque, numa única tacada, ela azeda a pantomima, faz do vilão-palhaço do filme um vilão-vilão de fato (como ele ousa tirar do espectador o lado inofensivo da comédia a que estávamos assistindo?) e ao mesmo tempo encerra toda a narrativa de luta de classes que até então atravessava Marty Supreme ludicamente. Depois disso, convenhamos, não resta muita opção senão torcer pelo pequeno americano no bendito ping-pong.
Que o filme, ambientado nos anos 1950, não se furte a tratar da memória dolorosa das bombas atômicas no Japão é uma disposição honesta de contextualizar o triunfalismo. Como pode parecer, esse triunfalismo chega com o sabor da melancolia. Cineastas judeus como James Gray contaram histórias parecidas reforçando seu caráter trágico (a amizade jovem com o gói em Armageddon Time; a luta de classes e a busca impossível por uma Manhattan inclusiva em Amantes). Safdie reconhece o trágico mas prefere o otimismo jovem embutido na revolta da trajetória marginal. Seu Marty Supreme escolhe o triunfalismo por seu valor como espetáculo, seu compromisso com a catarse e com a revolta, e não como um fim em si mesmo.
Ao final de O Brutalista, ouvimos um discurso que inverte o ditado famoso e diz que o importante é o destino, sim, e não a viagem. À luz de Gaza em 2025, como se interpreta essa fala? Independente da resposta, do seu lado o que Marty Supreme oferece é restabelecer o foco na jornada. Quando o vilão diz para Marty Mauser que não há segundas chances na vida, obviamente o filme se compromete a contradizê-lo em seguida, mas Safdie o faz sem deixar de lembrar que as vitórias, assim como as chances, nunca são definitivas. O movimento não cessa, nem seu acúmulo, e, depois de nove meses, é todo o ciclo geracional que recomeça. A bola viaja de um lado a outro da mesa.
Marty Supreme
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