Filmes

Crítica

O Mal que nos Habita faz da escatologia um exercício formal

Filme argentino encara nosso colapso como boas oportunidades de jump scares

Omelete
4 min de leitura
31.01.2024, às 17H52.
Atualizada em 05.02.2024, ÀS 10H35

Não parece coincidência que dois filmes cheguem quase ao mesmo tempo, um brasileiro e um argentino, respectivamente Propriedade e O Mal que nos Habita, exercitando cinema de gênero com os códigos mais frontais do filme de horror. É como se a preocupação com uma crônica do mal estar social - predileção da cinematografia desses dois países nos últimos 15 anos - já não bastasse para dar conta do que deixou de ser mal estar e se instalou de fato, neste quarto de século, como um colapso sem remédio aparente.   

Diante desse cenário, que não vislumbra saídas de emergência civilizacionais, parece que resta ao cinema encarar o colapso como oportunidade de escatologia pura. O termo parte, nesse caso, da sua acepção teológica: escatologia como a doutrina que trata do destino final do homem e do mundo, seja esse final profetizado ou não. Na chave de gênero, Propriedade pega pra si o filme de invasão domiciliar, na linha Os Estranhos (2008); O Mal que nos Habita recorre ao mais atemporal terror de possessão. Ambos são essencialmente variações sobre a escatologia, e não pedem licença ou desculpa por fazê-lo.   

No caso de O Mal que nos Habita, o “destino final” começa com aparente aleatoriedade, para depois ganhar - à medida em que o filme se acomoda em cima de diálogos expositivos - um caráter de profecia. A trama parte de uma possessão demoníaca numa fazenda no interior da Argentina, que inflama insatisfações e preconceitos entre colonos e indígenas, e depois as regras da possessão são colocadas para nós. Elas envolvem evitar ambientes com eletricidade, não falar o nome do demônio em voz alta, e principalmente não demonstrar medo diante dele. Como nos filmes de terror americanos similares, porém, seguir as regras não é garantia de sobrevivência. 

Enquanto veículo de alegorias sociopolíticas, o cinema de horror e seus códigos acomodam muito confortavelmente as expressões da escatologia. Em O Mal que nos Habita, ela funciona melhor nos dois primeiros atos, em que o colapso se confunde com desconcerto. O mal pode se manifestar a qualquer momento, de maneiras igualmente imprevistas, e o filme aproveita ao máximo esse poder de sugestão, ao mesmo tempo que nos sonega explicações que julgamos essenciais para entender o mal. Elas, as explicações, não vão muito além de trocas de farpas e ressentimentos entre personagens; o mal pode vir de um adultério, um incesto, um abandono parental, uma deslealdade entre vizinhos, uma disputa de terras. O desarranjo social não permite identificar uma única explicação, e O Mal que nos Habita sabe muito bem como cooptar nossa disfunção - essa crise de verdades e sentidos que vivemos todos os dias - para maximizar a imprevisibilidade dos seus jump scares.  

Não é por acaso que essa primeira porção do filme se pareça com Fim dos Tempos (2008) ao abraçar a escatologia, dado que, não custa lembrar, M. Night Shyamalan sempre conciliou o horror com o religioso nos seus filmes. O diretor argentino Demián Rugna não está tão interessado no caráter redentor dessas narrativas, porém, então o seu O Mal que nos Habita troca o desconcerto pela paralisia do colapso na segunda metade. É quando o filme se rende aos diálogos expositivos menos para justificar seus personagens e mais para afunilar suas entregas de catarse. As coisas ficam um pouco mais previsíveis nos sustos, talvez para que Rugna nos sinalize que no seu filme nada é tão aleatório assim, e que há sim uma ordem no caos - ou pelo menos uma lógica no castigo. 

Na comparação, Propriedade é um filme mais potente nessas entregas, porque o diretor Daniel Bandeira trata as viradas do seu roteiro como uma escalada escatológica, e o longa brasileiro efetivamente termina com uma resolução apoteótica de “destino final”. Na medida em que passa a encarar literalmente o colapso social como sinônimo de paralisia, O Mal que nos Habita se conforma mais em colocar o gore para desfilar, meio passivamente, ao invés de reagir a ele a todo momento com fúria e indignação. No mais, fica difícil cravar quem é o mais político dos dois, porque em última instância o que temos são graus muito próximos de uma mesma desesperança.

Nota do Crítico
Ótimo
O Mal que nos Habita
Cuando Acecha la Maldad
O Mal que nos Habita
Cuando Acecha la Maldad

Ano: 2023

País: Argentina

Classificação: 18 anos

Duração: 99 min

Direção: Demián Rugna

Roteiro: Demián Rugna

Elenco: Ezequiel Rodriguez

Onde assistir:
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