Clarice Lispector passou boa parte da infância no Recife, cidade que acolheu sua família ucraniana, em fuga da perseguição aos judeus que se espalhava pela Europa na época. Fala-se menos da vida de Clarice no Nordeste do que no Rio de Janeiro, para onde a escritora se mudou aos 14 anos, que é o local mais associado a sua obra. Na capital pernambucana, sua passagem é marcada por um casarão na Praça Maciel Pinheiro, no centro da cidade, que passou décadas abandonado até o surgimento de um projeto - ainda em seus estágios iniciais - que propõe transformá-la em um museu dedicado à escritora. Lispectorante chega aos cinemas antes dessa transformação, utilizando o estado de ruína da casa como ponto central de uma trama que, para além da localização, pouco tem a ver com Clarice.
De fato, a autora de A Hora da Estrela e A Paixão Segundo G.H. é só mais uma das referências que flutua pela mente criativa de Glória (Marcélia Cartaxo), uma artista plástica recém-divorciada que volta a morar com a tia, no Recife, após anos afastada da cidade. Por lá, ela não só enfrenta desafios econômicos e tragédias familiares, como também conhece e se apaixona por um vendedor de rua (Pedro Wagner), engatando um caso que vai empurrando para águas ainda mais profundas uma existência que já se encontra à deriva para início de conversa. Diretora e roteirista de Lispectorante, Renata Pinheiro (Carro-Rei) claramente se vê fascinada por essa história de choques sociais que se desenrola nas ruas inóspitas da metrópole, que ela filma sem muita cerimônia ou glamour.
Pinheiro tem, também, um elenco muitíssimo capaz de expressar esses choques. No centro do filme, Cartaxo (a outra grande conexão com Clarice do longa, uma vez que foi a protagonista do seminal A Hora da Estrela, de 1985) deita e rola com a oportunidade de interpretar uma mulher vagamente “clariceana” muito mais solta, sofisticada e desenvolta do que Macabéa. A Glória de Lispectorante pode se mostrar hesitante, até estranhamente formal, diante dos primeiros entraves que aparecem em seu caminho, mas Cartaxo opera uma transformação convincente nela, injetando nas ações mais impulsivas da personagem uma coragem que, ela nos faz acreditar, sempre esteve ali escondida em algum lugar. E a química entre ela e Wagner, cheia de sorrisos sugestivos e ternuras inesperadas, convence.
Mas menos envolventes são os momentos em que Pinheiro e seu corroteirista habitual, Sergio Oliveira, se deixam levar pelo onírico com a desculpa de trazer à tona os delírios imaginativos de sua protagonista. Por mais que tente, por exemplo, a sempre brilhante Grace Passô é desperdiçada em uma subtrama pseudo-apocalíptica que não chega a lugar nenhum, enquanto o texto se estica de maneiras improváveis para justificar o vai-e-vem do romance central, desenhado desde o começo como desprovido de conflitos de verdade. Não há nada de errado com um pouco de surrealismo ou com um toque lúdico dentro de uma narrativa dramática, é claro, mas Lispectorante não desenha essas correntes com linhas fortes o bastante para se passar por algo além de uma distração irritante.
A própria Clarice também tinha algo de místico, ainda que enterrado por baixo de uma tonelada do realismo cínico que ditou tanto da literatura de sua época. Em meio aos seus retratos de classe cruéis, que muitos leem como um misto de egocentrismo e autocrítica, se escondia a ideia de uma corrente vital inexplicável, que fluía entre os personagens e tornava suas tragédias mais pungentes. Numa leitura caridosa, pode-se dizer que Lispectorante tenta trazer à tona essa corrente, incorporando-a a uma história original que emula palidamente as jornadas femininas de libertação ou morte que ditavam a bibliografia da escritora. A sua relação com Clarice se pretende, assim, mais espiritual do que concreta - mas a impressão é que Pinheiro perde a mão nessa dosagem, e faz o contrário do que sua inspiração fazia.
Se, em Lispector, o surreal era abafado pelo real, tornando-o mais presciente, mais sinistro, em Lispectorante uma boa história humana é entravada pelos toques de misticismo que a cercam. Não é o suficiente para anular todas as virtudes do filme, mas vislumbrar o que ele poderia ter sido ainda é uma experiência frustrante.
Lispectorante
Ano: 2024
País: Brasil
Duração: 93 min
Direção: Renata Pinheiro
Roteiro: Renata Pinheiro, Sérgio Oliveira
Elenco: Marcélia Cartaxo , Grace Passô , Pedro Wagner
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