Kristen Stewart brilha em estreia como diretora com A Cronologia da Água
Cinebiografia de Lydia Yuknavitch desafia normas do gênero com ótimos resultados
Créditos da imagem: Filmes do Estação
Lidia Yuknavitch, escritora interpretada por Imogen Poots em A Cronologia da Água, narrou sua história primariamente através de contos. Narrativas condensadas, às vezes organizadas num livro único, e que – quer 100% verídicas ou polvilhadas com ficção – adicionavam mais camadas à pintura de sua vida, uma existência turbulenta que a diretora Kristen Stewart, em seu primeiro trabalho por trás da câmeras, decidiu capturar de maneira semelhante. Em doses. Capítulos. Vinhetas.
O filme inspirado na vida da autora dá diversos pequenos saltos no tempo em ordem essencialmente cronológica. Antes que uma sequência termine, a montagem de Olivia Neergaard-Holm tipicamente nos dá um vislumbre de algo que virá depois, assim informando uma cena com a próxima e transformando essa história em algo como ondas do mar – há um vai-e-vem, um sobe-e-desce, para o ritmo de A Cronologia da Água. É como se, tal qual Lidia, subíssemos para buscar a dose necessária de ar para continuar nadando até a outra margem. No caso da protagonista, essa inspiração é mais literal: a natação é seu primeiro refúgio da violência sexual que ela sofre nas mãos do pai. Primeiro, porque ele não sabe nadar. Segundo, porque é o esporte que dá a Lidia uma bolsa para ir até a faculdade em outro estado.
Stewart narra essa história quebrando diversas normas de cinebiografias. Há menos um interesse em comunicar quem Lidia é como profissional e mais um olhar atencioso para os detalhes íntimos de sua conturbada existência pessoal, algo que passa pelos abusos do pai ao vício em álcool, pelos relacionamentos frustrados às descobertas na escrita e, sim, pela atração constante da página e da caneta. Vemos quem ela é como escritora ao ver quem ela é como pessoa.
E A Cronologia da Água apresenta isso com uma direção de fotografia fabulosa. Rodado em 16mm, o filme faz extenso uso de closes, limitando aquilo que vemos para novamente acentuar a ideia de que estamos olhando através de pequenas janelas da vida da protagonista, até que esses vislumbres, juntos, formem um todo. Não é uma abordagem sem problemas, e especialmente quando mais e mais fatores externos entram na vida de Lidia, menos sentimos Stewart no controle do ritmo do longa. Essa irregularidade se manifesta, por exemplo, com o melhor e o pior trecho do filme.
No pior, Tom Sturridge surge como Devin, o segundo marido de Lidia num casamento que começa em estado de pura intensidade mas termina de maneira anticlimática, e fica bem claro que nem Stewart nem os atores sabem bem o que fazer com aquele material, ao ponto do personagem praticamente sumir de tela. É o oposto da segunda passagem da jovem pela universidade, quando ela passa a estudar com Ken Kesey. O autor de Um Estranho no Ninho é interpretado por Jim Belushi numa belíssima atuação, repleta de calor e sabedoria. o oposto da frieza e assustadora explosividade com que o igualmente brilhante Michael Epp encarna Mike, o pai de Lizzie. É ali que as correntezas de A Cronologia da Água mais parecem encontrar o equilíbrio perfeito entre seus temas de sofrimento, vícios e arte.
Em todos esses momentos, porém, há algumas constantes. A primeira é a capacidade da diretora de construir uma imagem marcante, claramente construída com significados a mil em mente, e a segunda é o trabalho de Imogen Poots no papel principal. Ela incorpora Lidia Yuknavitch de tal maneira que é impossível imaginar o papel sem seus grandes olhos azuis, bochechas vermelhas e fisicalidade marcante. Em Poots, Stewart tem uma espécie de trapaça. Mesmo nas horas em que o filme parece à deriva, A Cronologia da Água sempre pode voltar à sua âncora, e a atriz está mais do que disposta a servir de porto seguro.
Ela não tem medo de encarnar o lado mais feio e agressivo da personagem – as cicatrizes da ira guardada na infância se manifestam mesmo depois de anos longe do pai –, de ser vulnerável quando a vemos quebrada, e de oferecer brechas de luz quando Lidia encontra as saídas que busca desesperadamente. E, justamente porque Stewart se recusa a tratar A Cronologia da Água como um filme sobre uma pessoa pré-determinada a encontrar o sucesso, como tantas cinebiografias fazem, cada uma dessas fases emocionais é recebida de maneira genuína e honesta.
Tanto é que não será surpreendente ver pessoas descobrindo que A Cronologia da Água é uma crônica de uma pessoa real só quando os créditos declararem o feito. Este filme não segue um protocolo de cinebios, não joga seguro. Stewart erra e acerta, mas faz tudo com uma visão criativa clara e encorajadora. Não há melhor forma de anunciar sua chegada como diretora.
Exibido no Festival do Rio, A Cronologia da Água será lançado no Brasil em 15 de janeiro pelo Filmes do Estação.