Nos últimos 15 anos, o cinema de Jafar Panahi foi ancorado naquilo que o diretor iraniano, que neste tempo foi perseguido e preso no seu país, mostrava mesmo sem poder. No seu experimental Isto Não É Um Filme ele registrou seu cárcere privado, e em Sem Ursos ele interpretou uma versão fictícia de si mesmo para narrar sua luta para produzir filmes sem que o governo do Irã e seus departamentos de censura soubessem. It Was Just An Accident foi feito nessas circunstâncias, sem autorização e em segredo. Dessa vez, porém, é justamente o que Panahi não mostra que fortalece a obra.
Não vemos, por exemplo, o cachorro que Eghbal (Ebrahim Azizi) atropela, um acidente que danifica seu carro e o coloca no curso de encontrar Vahid (Vahid Mobasseri). Este homem, que já foi torturado pelo governo, não precisa rever seu torturador para reconhecê-lo, já que o rangido da perna prostética dele permanece em seus pesadelos e ainda lhe dá arrepios. Determinado a se vingar, ele executa um sequestro relâmpago, mas quando está prestes a enterrar Eghbal vivo, Vahid começa a temer ter confundido um inocente com o responsável por suas cicatrizes. Na busca por tirar a dúvida, Vahid cruza o caminho de mais quatro pessoas que têm graus diferentes de antagonismo pelo agente do Estado. Juntos, o quinteto precisa confirmar a identidade do sequestrado, e decidir o que fará com ele.
A questão é que a fotógrafa Shiva (Mariam Afshari), a noiva Golrokh (Hadis Pakbaten), o noivo sem nome (Majid Panahi), e o explosivo Hamid (Mohamad Ali Elyasmehr) não conseguem concordar sobre nenhuma das duas questões, e isso os leva a debates que servem como campo fértil para Panahi discutir uma ideia que não só potencializa o filme todo, como avança a conversa sobre seu próprio cinema. Inspirada por histórias que ele ouviu na prisão, It Was Just An Accident é um conto moral que pode facilmente ser visto como o diretor lutando para entender o que faria com aqueles que perpetuaram as injustiças cometidas por ele, e o vai-e-vem entre os personagens principais ilustra essa batalha interna com boas atuações e até mesmo algumas sequências hilárias.
O filme não se trata de uma comédia comum, mas encontra no humor desconfortável que surge das discussões e decisões arriscadas dos personagens – como a dos noivos de fazer tudo isso já vestidos para o casamento – um fio condutor nos ligando diretamente ao coração da narrativa, já que cada riso é acompanhado por um momento de conscientização acontecendo simultaneamente com os protagonistas e o público. São respiros que deixam claro não só o absurdo da situação, como sublinham a disposição de pessoas injustiçadas a cometer absurdos em nome de justiça, ou menos de algo que exorcize seus demônios. E o que exatamente é isso? Esta é a pergunta que anima o drama de It Was Just An Accident. Enquanto uns acreditam em olho por olho, outros consideram agir com misericórdia. Tortura e morte são, afinal, as armas do inimigo.
Um dos enormes créditos do filme vem em como o roteiro de Panahi constrói as cinco pessoas dessa jornada (ou pelo menos quatro, já que o noivo é essencialmente alívio cômico) como figuras quebradas, uma noção apoiada pela capacidade de cada ator – todos não profissionais – em expressar dores íntimas quando necessário. Essa construção permite exatamente a consideração de ambos cenários, vingança ou perdão, em doses iguais. It Was Just An Accident não tenta justificar homicídio, mas reconhece as motivações humanas que levariam alguém a tomar atitudes drásticas quando os meios legais são controlados pelas mãos que os feriram para começo de conversa, e o efeito disso, especialmente porque não há um flashback para vermos a resposta sobre Egbhal, é devastador. Ainda que Panahi use piadas ocasionais para ajudar a pontuar certas cenas – e o cineasta merece enorme crédito por não perder controle do tom do filme – e conferir aos procedimentos um ritmo mais ágil, há uma melancolia palpável correndo por baixo de tudo isso.
Nada deixa isso tão claro quanto a reta final de It Was Just An Accident. Uma visita ao hospital esclarece quão caro seria o custo do que Vahid e seus companheiros pensam em fazer, além de ajudar a trazê-los de volta à terra, clarear sua mente e dar um rumo certo ao filme. Depois disso, um confronto verbal expõe os arrependimentos e assombrações vivendo dentro de cada um. São minutos valiosos no cinema de Panahi, que sugerem um cineasta interessado em sonhar novamente, em deixar algumas coisas para trás não porque irá esquecê-las, mas por medo de que elas o consumam. Ainda assim, é cedo demais para dizer o que o futuro aguarda. Como ilustrado na arrepiante cena final de It Was Just An Accident, uma que vem com margem para diferentes interpretações, certos fantasmas nos perseguirão para sempre. Nestes casos, a única coisa que podemos controlar é como reagimos.
It Was Just an Accident
Un Simple Accident
Ano: 2025
País: Irã, França e Luxemburgo
Duração: 105 min
Direção: Jafar Panahi
Roteiro: Jafar Panahi
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