|
||
As melhores piadas são as de duplo sentido. Onde anda você (2004) está cheio deles. Mas isso não faz do filme de Sergio Rezende um modelo de comédia. Pelo contrário, nele a duplicidade vira bipolaridade: uma idéia não cabe na sua oposta e o filme acaba freqüentemente desequilibrado.
O próprio título já tem o seu duplo sentido. Pode soar uma pergunta romanticamente nostálgica, mas representa mesmo um amargo dissabor. "Onde anda Você" é o nome do programa de televisão que caça antigos astros, cujo tempo já vai longe - quase um atestado de óbito, enfim.
Depois de ser entrevistado pelo programa, Felício (Juca de Oliveira), humorista-palhaço da época de ouro da televisão, sente o baque do tempo. Uma sensação, aliás, potencializada pela morte de sua ex-mulher, Paloma (Drica Moraes), linda mulher que o traiu com o finado parceiro de comédia Mandarim (José Wilker). Felício tenta contornar a situação: planeja um retorno triunfante. Daí, sim, Onde anda você justifica o seu sentido mais imediato, o revivalista, ao acompanhar as viagens de Felício em busca de um novo parceiro.
Rezende consegue conciliar bem a homenagem à grande estirpe de comediantes nacionais com a crítica ácida ao mundo atual do entretenimento. Mas as duplicidades começam logo a aparecer e expor as fragilidades de um roteiro que roda em falso: o antigo não se acerta com o novo, a originalidade se confunde com o fácil apelo comercial e a verve nacional se dilui dentro da referência à comédia italiana.
Entenda-se como "antigo" o humor ingênuo, os diálogos teatrais, as tiradas milimetricamente ensaiadas; e como "novo", a identificação cada vez maior do público da Retomada com os registros realistas, naturalistas. O filme se perde entre os dois. Assim, Onde anda você periga não encontrar uma audiência certa para a sua vocação mambembe, o seu teatro do absurdo, para os seus protagonistas de meia-idade e os seus coadjuvantes de luxo, comediantes esquecidos como José de Vasconcelos.
A originalidade da idéia também perde espaço para o apelo comercial, numa frustrada tentativa de soar "moderno". Se Felício viaja até as praias do Nordeste para procurar um novo parceiro, isso não acontece somente porque é uma terra frutífera em humoristas. Acontece, também, para aproveitar as dunas, os coqueiros, as locações campeãs de audiência de Deus é brasileiro (de Cacá Diegues, 2003). E no fim das contas, a região se faz notar, mesmo, pelas suas paisagens.
A manobra de Rezende é honesta, visa cativar a audiência com elementos aos quais ela já está acostumada. Mas resulta atrapalhada. Um exemplo disso é a participação mecânica de José Dumont, ator versátil que fez do improviso a sua marca em Narradores de Javé (de Eliane Caffé, 2003). Outro é o retrato da personagem de Regiane Alves. A nudez da atriz seria uma homenagem às voluptuosas e oníricas mulheres fellinianas; mas como o papel é mal explicado e mal resolvido, parece só uma promoção gratuita para instigar a platéia masculina.
E, finalmente, a questão da duplicidade entre o nativismo e a italianada. Não é coisa pequena: as citações a Federico Fellini (1920-1993) estão no cerne do filme. Antes de bolar o argumento, Rezende já tinha na cabeça a música orquestrada inspirada nos temas húngaros que Nino Rota (1911-1979) criou para o mestre. O brasileiro também fez questão de exibir os clássicos fellinianos para elenco e produção - e diz, ainda, que se esforçou para chegar perto do italiano com este filme.
Das duplicidades controversas, essa é a mais amena. Beber na fonte do italiano, afinal, é garantia de bons antecedentes. E de fato, como diz o material do filme divulgado à imprensa, "há mais em comum entre a Rimini [cidade natal] felliniana e o nordeste brasileiro do que sonha a vã cinematografia".
O problema é que essas referências superam a invenção de Onde anda você. São breves os momentos de humor realmente genuíno, como as boas sacadas do empresário de TV, do faquir e da borracheira Socorrinho. No grosso do filme, o que se vê são os mesmo palhaços de Fellini, os mesmos sonhos de Fellini, as mesmas gordas de Fellini... O final do filme, inclusive, um passeio surreal e emocionado à beira-mar, seria lindo se não fosse uma versão do final de A estrada da vida (La strada , 1954). O pecado não é tão grande, na verdade. A genialidade do original é tamanha que até o próprio Fellini se autoplagiou, em A doce vida (La dolce vita , 1960).