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Uma mulher diferente das demais desafia machismos arraigados e se vê discriminada na comunidade conservadora em que vive. Esse tema, base para a trama de Respiro (2002), já se tornou um clássico libertário do último século. Difícil é renová-lo hoje sem cair na habitual denúncia feminista.
E por tratar-se de um filme italiano, a situação tende a se complicar: criamos a expectativa de ver algo parecido com o Malèna, de Giuseppe Tornatore, filme de visual atraente, mas sentimentalmente apelativo, que santifica a mulher e reduz a questão a lições de moral.
Pois a roteirista e diretora Emanuele Crialese sabe como contornar essa armadilha. Busca nA Terra Treme (La terra trema: episodio del mare, 1948) de Luchino Visconti (1906-1976) e no Lucía e o Sexo (2001), de Julio Medem, os seus parâmetros - para então empregá-los numa criação singular. Com sensibilidade no uso de simbologias, com moderação no tratamento do drama, com confiança na narrativa visual, faz de Respiro um surpreendente registro humanista. Levou, justamente, o Grande Prêmio da Semana da Crítica e o Prêmio do Público no Festival de Cannes.
De Visconti, Emanuele busca a inspiração documental. Ambos os filmes falam do choque de tradições numa cidadezinha pesqueira da Sicília, mas ela dispensa o posicionamento socialista do velho mestre neo-realista. Aqui, detalha o dia-a-dia das famílias dos pescadores com o intuito de demarcar muito bem a atmosfera que ronda essa mulher em questão, Grazia, vivida pela estrela Valeria Golino - única profissional num elenco de pessoas da região, outro legado do Neo-Realismo.
Vícios da terra
Mãe de três filhos, Grazia mora com o marido e a sogra. Trabalha, como todas as demais senhoras, na limpeza dos peixes que os homens trazem diariamente. Sonha em viajar. Mas a maior liberdade a que se permite é boiar nua em banhos de mar. O marido pescador e os dois filhos meninos logo tosam essas "loucuras", combustíveis de fofocas nas rodas sociais. E Grazia, cada vez mais abafada pelas leis primitivas que regem o lugar, sofre ataques nervosos. Tida como louca pela comunidade, lhe resta a esperança de se ver livre.
Não chega a incomodar o talento limitado de Valeria Golino - ou o fato de Grazia ser a única mulher com traços finos em meios às narigudas sicilianas. Inspirada na Lucía vivida por Paz Vega, a bela atriz privilegia a sensualidade transbordante, quase incômoda, anacrônica naquele tempo claustrofóbico. E isso basta.
Mas é na eficaz interação com o espaço, tão bem exercitada nas cidades litorâneas dos dramas de Visconti e de Medem, que Respiro faz a sua escolha mais feliz.
Tudo bem, usar a beleza dos altos penhascos e das encostas repletas de grutas e lagos azuis para arrebatar audiências já se tornou um clichê mediterrâneo. Mas Emanuele extrai desse chavão algumas metáforas genuínas. A mais emblemática é aquela que mostra a primogênita de Grazia com dificuldades de andar de salto alto por entre as rochas à beira-mar. A câmera de Emanuele enfoca justamente os pés da menina - maneira mais do que poética de ilustrar o conflito entre a vaidade represada e os percalços enraizados naquela cultura.
Segura nessa associação entre a paisagem e a ação, a diretora extrai daí a idéia para o seu desfecho. Se o espectador ainda duvida dos caminhos do filme, se ele desconfia que tantos problemas só podem ser resolvidos de forma solene, ou conclusiva, ou apelativa, ou melodramática, o final inspirado de Respiro o surpreende.
Na acachapante cena derradeira, naquele balé suspenso, entendemos que uma possível solução contra o reacionarismo não surgirá com malabarismos, com fórmulas mágicas, com socorros de fora. A solidariedade vem da própria tradição local: tirar os pés do chão ajuda a afastar os vícios da terra.
Respiro
Respiro
Ano: 2002
Gênero: Drama
País: Itália, França
Classificação: 14 anos
Duração: 95 min
Direção: Emanuele Crialese
Elenco: Valeria Golino , Vincenzo Amato , Francesco Casisa , Veronica D'Agostino
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