Antes de se tornar uma das principais cineastas francesas, Mia Hansen-Løve estreou no cinema aos 18 anos como atriz em Fim de Agosto, Começo de Setembro (1998), interpretando no filme de Olivier Assayas o ideal de beleza jovem, uma coisa a ser protegida do mundo, e que nenhum dos muitos desencontros desse drama amoroso conseguiria abalar. Anos depois, Hansen-Løve e Assayas começariam um relacionamento, que durou 15 anos, período em que ela trocou o ofício de atriz pelo de roteirista e diretora.
As histórias de formação juvenil e as relações problemáticas de influência com figuras masculinas integram o cinema de Hansen-Løve desde o início, especificamente nos seus dois primeiros longas-metragens, Tudo Perdoado (2007) e O Pai dos Meus Filhos (2009), e depois no semibiográfico Adeus, Primeiro Amor (2011). É só agora, porém, em seu sétimo filme, A Ilha de Bergman, que Hansen-Løve abraça a metalinguagem e aborda mais de frente a dinâmica entre homens e mulheres que dividem processos criativos e também uma cama de casal.
Na trama, dois profissionais de cinema, fãs de Ingmar Bergman, Tony (Tim Roth) e Chris (Vicky Krieps), viajam até a ilha de Faro para conhecer o mítico local onde o cineasta sueco morou e filmou. Tony é um famoso diretor de filmes de terror, e combina com Chris, sua esposa, com quem tem uma filha, que ambos vão aproveitar a estadia para escrever seus novos roteiros - o que Tony logo faz com desenvoltura, enquanto Chris, isolada nessa silenciosa ilha no Mar Báltico, emperra em um bloqueio criativo.
O fato de Bergman ter sido um prolífico autor de cinema e teatro enquanto suas mulheres criavam sua prole (o cineasta casou-se cinco vezes e teve nove filhos) obviamente não escapa ao texto do filme, e inclusive é uma das primeiras informações que Tony e Chris discutem com os habitantes da ilha, que organizam rotineiramente passeios de cinefilia entre museus e cenários de filmes de Bergman. Hansen-Løve não cria uma relação óbvia de causa e efeito, mas dá a entender que ela existe: o bloqueio criativo de Chris talvez seja consequência da constatação de que ser mulher de um cineasta famoso será sempre mais difícil.
Uma premissa assim poderia facilmente se prestar a uma história sobre ressentimentos e sobre discretos jogos de poder a dois - inclusive seria até esperado, uma vez que o próprio Bergman legou ao mundo algumas DRs memoráveis nesse sentido. Hansen-Løve tem plena consciência da sua condição de “visita” em Faro, porém, e emular qualquer um dos modos de operação de Bergman seria um convite ao pastiche. O que ela faz, então, ao invés de enclausurar o casal num quarto para um debate sobre o sexismo no século XXI, é… aproveitar as férias.
Na sua primeira metade, A Ilha de Bergman se inscreve numa tradição bem francesa de filmes de veraneio que versam sobre a condição humana ao mesmo tempo em que as praias se enchem de banhistas; uma coisa não exclui a outra e inclusive pode ser mais fácil acessar os cantos da psique quando estamos com a guarda baixa, em roupas de banho. É nessa chave que Hansen-Løve consegue trabalhar o ridículo sem desumanizar seus personagens: Tony se enche de sorrisos quando lhe pedem autógrafos mas se entedia numa competição de conhecimento de fanboys de Bergman; Chris pedala introspectiva de um lado ao outro mas faz a boa turista quando compra os mesmo óculos de sol que Bibi Andersson usou em Persona (1966).
Essa leveza no relato é a maneira que o filme encontra para desarmar os discursos prontos que carregamos conosco na hora de tratar das dinâmicas de gênero (a começar pela ideia do homem prático, cerebral, versus a mulher hipersensível, que o filme tateia de início). Enquanto atriz, Hansen-Løve conheceu em primeira mão os efeitos da idealização da beleza e da juventude sob um olhar masculino, e aqui ela oferece a Vicky Krieps a oportunidade de descobrir e definir por conta própria quais são os limites e as possibilidades da sua condição de mulher, roteirista, esposa e mãe. O filme não procura para Chris um arrebatamento folclórico no Sagrado Feminino - a personagem parece mais disposta a curtir uma cidra na frente do mar do que a correr com os lobos - mas sim uma jornada de autoconhecimento através do processo de criação.
Isso toma corpo na segunda metade, quando A Ilha de Bergman mergulha de cabeça naquela proposta de metalinguagem que desde o começo já estava meio insinuado. Quando o filme-dentro-do-filme começa a ser encenado, isso talvez desperte uma desconfiança no espectador porque afinal é um recurso já bem desgastado, mas Hansen-Løve evita as armadilhas do registro literal demais. Quando ficção e “realidade” se apaziguam no final, o que fica para nós é uma Chris agigantada pela conquista da sua voz. Vicky Krieps está habituada a esse tipo de papel (qualquer atriz que atravessasse uma relação de poder a dois como aquela de Trama Fantasma pode se considerar especialista no assunto) e é notável como sua consciência corporal consegue dar forma a essas duas Chris muito distintas, na introspecção e no triunfo.
O que define o feminino? É a maternidade, é a emancipação? É curioso antepor este A Ilha de Bergman com filmes do momento, como A Filha Perdida, para colocar essas questões em perspectiva - para ver como as angústias se movem de lugar. Mia Hansen-Løve evita os argumentos binários e os discursos prontos da mesma forma que Chris no filme percebe que sentar numa mesa debaixo da janela diante de uma paisagem bucólica não vai automaticamente ligar sua inspiração para escrever. A pulsação do filme e sua energia, discretas mas por vezes transbordantes, estão na crença no processo e na vivência. É isso que permite conquistar a autoridade sobre nossa própria experiência.
Ano: 2021
País: França
Classificação: 14 anos
Duração: 105 min
Direção: Mia Hansen-Løve
Roteiro: Mia Hansen-Løve
Elenco: Tim Roth, Vicky Krieps