Garotas do ABC | Crítica
<i>Garotas do ABC</i>
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Carlos Reichenbach é único. Sua trajetória é repleta de filmes contestadores, não no sentido político da coisa, mas sim na intenção sutil de colocar questões chaves dentro de um ponto de vista semi-anárquico. Foi assim que se tornou um expoente do cinema da Boca do Lixo, fitas realizadas na década de 1970 e início dos 1980, que exploravam o sexo e a decadência humana nas grandes cidades como matrizes da construção de suas narrativas.
Se a crítica especializada aponta o Cinema Novo como a maior vertente da sétima arte no Brasil, o cinema da Boca do Lixo de Carlão é a acidez e cretinice das grandes metrópoles sendo dissecadas nas telonas. A Ilha dos Prazeres Proibidos, de 1978, ou O Império do Desejo, de 1980, são basilares. Com este retrospecto, nada mais natural do que esperar que sua nova produção, Garotas do ABC, flertasse com o antigo estilo. Mas não é bem assim...
Reichenbach ficou mais suave. Os tempos mudaram, a ironia e o humor também tiveram de mudar. Hoje, ninguém mais se surpreende com nudez, putarias ou outras coisas do gênero. A televisão brasileira já tomou o posto da Boca do Lixo. Então, Carlão resolveu partir para uma outra produção, um meio termo entre a cretinice antiga e um cinema mais sério. O resultado é bem interessante.
Em São Bernardo do Campo, no ABC paulista, operárias participam do dia-a-dia mais normal que se pode exigir. Aurélia (a bela Michelle Valle), carioca e fanática por Arnold Schwarzenneger, está apaixonada por Fábio Tavares (Fernando Pavão). Porém, o rapaz é um daqueles patéticos neonazistas. União pouco usual: uma negra e um preconceituoso. Em cima desta amarra, o diretor constrói seu universo endoidecido.
Em várias frentes, Carlão narra a vida das operárias da fábrica têxtil, em especial de Paula Nélson, assediada pelo um líder sindical ao mesmo tempo em que tenta manter a harmonia entre as meninas da fábrica; Antuérpia, que aos 38 anos tenta iniciar-se na profissão de tecelã; e a masoquista-casta Suzana, apaixonada pelo patrão. E também dá vazão aos delírios de Salesiano de Carvalho (Selton Mello, impagável), um integralista que comanda e controla um pequeno grupo de neonazistas, especializado em atentados contra nordestinos. Amarrando a história, as duas frentes irão se encontrar num bailão de sexta-feira, no clube cuja a dona é ninguém mais, ninguém menos do que a bizarra Fafá de Belém.
Desde do início, Reichenbach mostra o que pretende. Começa com um anti-strip. Aurélia, inicialmente nua, vai se vestindo. Historicamente, ele sempre fez o contrário. Mas se deixou o enfoque do sexo como segundo plano no enredo, transformou o filme inteiro numa piada, não no sentido negativo, mas sim de mostrar o quanto é patético existir qualquer traço de racismo num país como o Brasil. E quando se trata de esculacho, Carlão é o cara.
Mas nem tudo são flores no trabalho de Garotas do ABC. O filme original tinha mais de três horas de duração, mas para a versão comercial, a história foi comprimida em 130 minutos, o que gera, em vários momentos, a sensação de desapego e falta de amarras. Situações surgem e se esvaem sem qualquer relação com o que vinha sendo apresentado, o que pode enfastiar um pouco o espectador. Um erro que acaba sendo compensado pela boa fotografia e pela verve de Reichenbach.
Na onda da campanha à la Galvão Bueno de "o bom do Brasil é o brasileiro", Garotas do ABC é um primor do retrato irônico do país, com os estereótipos perfeitos da burguesia preconceituosa, burra e entediada de São Paulo, com o zé povinho alienado e rudimentar apenas se preocupando com sexo e diversão. Agora, decida-se qual deles é você.



