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De Passagem | Crítica

<i>De passagem</i>

29.04.2004, às 00H00.
Atualizada em 11.11.2016, ÀS 15H05

De passagem
Brasil, 2003
Drama - 87 min.

Direção: Ricardo Elias
Roteiro: Ricardo Elias, Claudio Yosida


Elenco: Lohan Brandão, Wilma de Souza, Priscila Dias, Silvio Guindane, Paulo Igor, Mariana Loureiro, Lucélia Maquiavelli, Fabinho Nepo

O momento pede um filme como De passagem (2003). Nas telas, a qualidade técnica das películas nacionais chegou a um patamar tão alto que fica difícil encontrar conteúdo decente além do esteticismo. Fora delas, a brutalidade urbana transformou o que deveria ser motivo de reflexão coletiva num caso de polícia. A estréia do diretor paulista Ricardo Elias - um retrato sensível e sem maquiagens do drama de três jovens da periferia - chega, enfim, em hora mais que oportuna.

Prestes a concluir o colégio militar no Rio de Janeiro, Jeferson (Silvio Guindane) volta às pressas para São Paulo quando recebe a notícia da morte de seu irmão, Washington, envolvido no crime. Jeferson precisa atravessar a cidade de metrô para fazer o reconhecimento do corpo. Leva consigo Kennedy (Fábio Nepo), amigo dos irmãos na infância e parceiro de Washington na bandidagem. A viagem começa - enquanto uma segunda narrativa, paralela, lembra em flashbacks o dia em que os três garotos, ainda pequenos, são escalados por um traficante para fazer uma entrega do outro lado da cidade. São duas pontas, a iniciação e o desfecho, de uma história pessoal que se confunde com uma tragédia social.

Já no início da sua trajetória, quando foi consagrado em meio à fraca competição de Gramado (como melhor filme segundo júri e crítica, melhor diretor, melhor roteiro e melhor ator coadjuvante para Nepo), o filme era visto com ressalvas, foi julgado morno pelos presentes. Mas houve consenso: trata-se de um daqueles casos excepcionais em que os defeitos evidentes podem ser perdoados em nome de uma causa maior, o tema urgente e o enfoque humanista. A prova de que essa atitude dos especialistas não é meramente misericordiosa veio da fatia mais implacável da audiência: o público. De passagem levou o prêmio de melhor filme brasileiro, segundo o júri popular, na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

A idéia, de fato, é muito promissora. Evidencia-se a semelhança com a obra máxima do italiano Valerio Zurlini (1926-1982), Dois destinos (Cronaca familiare, 1962): ambos tratam de dois irmãos separados por uma realidade cruel, que só conseguem se reconciliar diante da morte. E Elias tem estofo para tratar da peculiar temática das periferias. Apesar de branco, formado em Cinema pela USP, foi criado na Cidade Patriarca, bairro pobre e violento da Zona Leste paulistana. Conhece, então, essa realidade bem o suficiente para não vê-la com exagerada complacência.

Mas se sobra conhecimento de causa ao diretor, lhe falta a segurança que só se adquire com o exercício contínuo. Em entrevistas, Elias se mostra defensivo, sempre à procura de legitimar as suas opções. Frisa, por exemplo, a sua escolha pela linguagem clássica, de planos longos, ao invés do recorrente ritmo clipado cujo maior expoente é Cidade de Deus. O problema é que essa posição defensiva se estende à obra, traduzida em closes excessivos para pontuar a dramaticidade, na falta de independência em relação ao roteiro e em tomadas reiteradas dos trens para demarcar a metáfora da travessia.

Como a história que propôs contar se limita a uma fiapo de roteiro, de fácil compreensão, Elias poderia muito bem dispensar os diálogos redundantes e se sustentar na narrativa visual. É a maneira encontrada por Zurlini, por exemplo, para aprofundar o seu drama. De passagem ensaia esse vôo mais ambicioso na cena do necrotério, que Elias inclusive faz questão de citar nas suas defesas. Chegou a hora de Kennedy e Jeferson saberem se o corpo é mesmo de Washington. É o instante em que a câmera fica estática durante um minuto e quarenta no rosto angustiado e mudo de Guindane, um ator com poder de interpretação incomum. E é o momento mais penetrante de um filme honesto, distinto, mas que teria potencial para render mais.

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