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Crítica

Adorável Júlia | Crítica

<i>Adorável Júlia</i>

ÉF
24.03.2005, às 00H00.
Atualizada em 16.11.2016, ÀS 08H02

Adorável Júlia
Being Julia

EUA, 2004 - 109 min.
Drama/Comédia

Direção: Staván Szabó
Roteiro: Ronald Harwood, W. Somerset Maugham (romance)

Elenco: Annette Bening, Jeremy Irons, Bruce Greenwood, Miriam Margolyes, Juliet Stevenson, Shaun Evans, Lucy Punch, Tom Sturridge, Maury Chaykin, Sheila McCarthy, Rosemary Harris, Rita Tushingham, Leigh Lawson, Michael Gambon, Catherine Charlton

Se o cinema pudesse ser comparado a laranjas, e suas qualidades e contribuições para o engrandecimento da arte fossem a extração de seu suco, Adorável Júlia (Being Julia, 2004), novo filme do diretor húngaro István Szabó (Mephisto, Colonel Redl), conseguiria encher não mais do que meio copo.

O filme é uma adaptação de um clássico romance de W. Somerset Maugham, Theatre (1937) e, como o classicismo sugere, vem cheio de construções cênicas rebuscadas, personagens que não poupam sua empáfia e uma arquitetura dramática que namora o estilo rococó. Na obra literária, procura-se criar um caminho de mão dupla entre o teatro e a vida real, em que um invade o território de outro. No filme, essa miscigenação está bem clara: começa com um suposto diretor de teatro, o personagem Jimmie Langton (Michael Gambon) falando para a câmera que o teatro é a única realidade. Logo em seguida, corta para a atriz principal, Julia Lambert (papel de Annette Bening, que concorreu ao Oscar deste ano), que diz estar cansada. Um desgaste físico, uma entrega sofrida à arte de representar que, no dia-a-dia, longe do tablado e dos holofotes, traz conseqüências não muito saudáveis. Vemos então Julia desempenhando os papéis que a vida exige. Seria o palco uma réplica do nosso espaço cotidiano, um reduto menor do nosso ambiente de convívio, um simulacro do nosso cosmo que nos dá a liberdade e o dever de colocar resumidamente todos nossos desejos e emoções? Ou seria a vida uma grande arena com produção de baixo orçamento, um ininterrupto espetáculo que nos dá o direito de representar a todo instante, colocando nossas ações e emoções dentro de um jogo tragicômico e farsesco?

A história se passa em 1938. Julia é uma talentosa e consagrada atriz na faixa dos 40 anos, convocada para grandes papéis das maiores produções da região londrina conhecida como West End, uma espécie de Broadway européia. Seu casamento com o produtor teatral Michael Gosselyn (Jeremy Irons, de O Reverso da Fortuna, Lolita) não é o que se pode chamar de perfeito. Michael excede na irreverência de seu caráter e não cumpre certas funções no campo afetivo. Leva a vida conjugal com uma certa ironia e desinteresse. Trata a musa que divide seu leito como se ele fosse um admirador que leva flores ao camarim da atriz principal. Carrega sempre papel e caneta, como se em seu casamento estivesse tratando de negócios. Parece que o acordo nupcial tem a mesma importância de um contrato trabalhista de qualquer integrante de sua trupe. O resultado disso é um laço matrimonial frágil, burocrático, rotineiro. Julia está ciente desse desmoronamento, mas seus impulsos e suas necessidades não a deixam se aprisionar por essa condição. A estrela da noite não pode se submeter ao papel de Amélia, ela precisa brilhar em todos os cantos. Por isso, mantém um affair com um ricaço, Lord Charles (Bruce Greenwood). Com medo de escândalos, Charles a dispensa. No meio disso tudo, surge um admirador imberbe, Tom Fennell (Shaun Evans), um rapazola que faz declarações de amor eterno à diva. Isso lembra uma frase do mito Rita Rayworth, que certa vez disse que os homens vão pra cama com Gilda, mas acordam ao lado de Rita Rayworth. A arte é capaz de transformar o ser humano em deuses imortais. Não há envelhecimento, não há decrepitude. A arte finca eternos testamentos na história.

Essa nova configuração amorosa muda a vida de Julia, deixando-a mais dialética. Há o sustento, que vem junto com a monotonia. Há o prazer, mas é um prazer proibido, tão libidinoso quanto secreto. E há o surgimento da constatação do mito, a adoração platônica. O contato dos corpos vem sintetizado em diferentes esferas. Numa, ele não mais atrai. Em outra, o prazer é negado. E na última, em que o prazer se confunde com a experimentação, o quase tocar é tão orgástico quanto o sexo. Essa fragmentação do entendimento do amor é que conduz a maneira de se dirigir o filme. Personagens até então fundamentais somem de cena, e a predileção pelo fedelho é evidente. É ele quem rende mais história. São as discrepâncias etárias e econômicas que procuram deixar o filme mais interessante.

Julia começa a sentir na vida o crepúsculo dos palcos. É preterida do estrelato, e passa a interpretar um papel de mera coadjuvante do destino. O peso da idade pesa, ela se sente gorda. A cena em que faz ginástica contemplando um quadro ao estilo do pintor colombiano Fernando Botero é de uma sutileza elefântica. Um retrato sublime de que a arte estabelece um diálogo tão estreito com a vida, que é preciso enxergar através dela para olhar a si mesmo.

O texto de Maugham é rico em elementos de ruptura de valores e contestação social. Sobram ataques à hipocrisia, aos preconceitos em relação ao homossexualismo, aos jogos de interesses. O surgimento repentino de uma aspirante a atriz, a novata Avice Crichton (Lucy Punch) é o momento mais claro de que a sociedade nas ruas é bem diferente daquela descrita em um roteiro ideal. Mas essas nuances são colocadas de um modo leve demais. Os trejeitos cheios de pomposidade, os discursos empolados, tudo é muito empetecado para uma contundente crítica social. Faz-se um esforço sobrenatural para deixar este trabalho como aquilo que comumente se denomina comédia simpática e despretensiosa. Com isso, há um distanciamento enorme entre o objeto e o resultado nas telas.

Como em toda peça teatral clássica, existe o final apoteótico. O filme fica mais orgânico no momento em que destrói essa maquiagem de costumes. A ambigüidade metalingüística que expõe o ator ao seu íntimo, tanto na peça quanto no filme, é o que vale a imersão no cinema. Há uma quebra rítmica em relação ao início impressionante. Interpretar não é apenas dar um falsete na entonação de voz, tampouco reproduzir as falas do texto. Essa superficialidade epidérmica cede lugar a um exercício intenso de compreensão da obra. Somem as couraças que protegem o ator. Entra uma direção mais experimental, mais ágil. O acúmulo de citações e clichês se esvai, para deixar brilhar sozinho o encanto do ensaio, do improviso. Os atores mais categóricos dizem que dá azar dizer a última linha no ensaio. Mas como a ordem é quebrar regras tradicionais, que fique a tradução de um trecho da música Smoke Gets in Your Eyes como epílogo: Eles me perguntaram como é que eu sabia que meu verdadeiro amor era verdadeiro/ Claro que eu respondi que algo aqui dentro de mim não dá pra negar.

Nota do Crítico

Bom
Érico Fuks

Adorável Júlia

Being Julia

2004
25.03.2005
104 min
Drama
País: Canadá, EUA, Hungria, Reino Unido
Classificação: 12 anos
Onde assistir:
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