Não há muitas duplas de diretor e ator comparáveis a Akira Kurosawa e Toshiro Mifune. Juntos, as duas lendas trouxeram à vida mais clássicos do que qualquer outro par, incluindo Os Sete Samurais, Yojimbo, Trono Manchado de Sangue e Céu e Inferno. É este último que foi atualizado por uma das seletas combinações de artistas tão inseparáveis quanto os japoneses. Spike Lee e Denzel Washington são dotados de uma assinatura tão própria quanto os mestres responsáveis pelo filme original, que nos EUA passou a se chamar High & Low, e que em suas mãos virou Highest 2 Lowest.
A ideia é, em geral, a mesma. Um titã de indústria está prestes a usar todo o seu dinheiro para obter controle total da empresa onde investiu seu suor por décadas quando o impensável acontece: seu filho é sequestrado. Após alguns instantes de pânico, porém, a situação se mostra menos urgente para a família, mas infinitamente mais complicada moralmente. O garoto está a salvo porque os sequestradores erraram e levaram por engano o filho do motorista, com quem o homem rico trabalha há anos, no lugar do seu alvo original. Seja como for, eles querem que ele pague. A vida do menino está em suas mãos.
Mas se a obra-prima de Kurosawa, um exemplo da capacidade ímpar do cineasta de enquadrar pessoas entre quatro paredes para criar um vai-e-vem poderoso com palavras e posturas, funcionava como um conto de moral que explora a natureza do certo e errado, Spike Lee vê a narrativa, originada no livro King’s Ransom de Ed McBain, através do gênero. O diretor de Malcolm X e Infiltrado na Klan constrói, priorizando cenas no exterior de sua amada Nova York, um filme de ritmo veloz e música constante. E a escolha tem tudo a ver com sua interpretação de High & Low.
No lugar do designer de sapatos de Mifune está David King (Washington), um homem cujo nome inspira comparações ao Rei Davi do mito bíblico, e cujas orelhas são conhecidas como as melhores da indústria musical. Sua gravadora está prestes a ser comprada por uma empresa de tecnologia que vê IA como o futuro da música, mas no lugar do dinheiro fácil, David decide que é hora de se arriscar mais uma vez. Através de empréstimos agressivos, ele adquire os recursos necessários para tomar o controle da diretoria, bloquear a venda e iniciar uma nova etapa em sua carreira.
Em outras palavras, não há hora pior para os criminosos demandarem, rápido, US$17.5 milhões em troca da vida do filho de Paul Christopher (Jeffrey Wright), motorista que trabalha para David há anos, e que já lhe deve muito. Com passado criminal, ele recebeu uma segunda chance através desse emprego. Os filhos dos dois, Trey (Aubrey Joseph) e Kyle (Elijah Wright) são amigos e têm futuro no basquete, e agora a vida de um deles, justamente o que não tem nenhuma relação de sangue com o magnata, está nas mãos de David.
Essa é uma história sobre dinheiro. Sobre como ele faz as pessoas mudarem, sobre o que as pessoas estão dispostas a fazer em nome dele, e sobre o que deixam para trás na sua busca por mais e mais. Mas se para Kurosawa dinheiro era uma forma para falar da divisão de classe japonesa, ilustrada no longa de 1963 com uma casa no topo da colina e outra nas profundezas da pobreza, Lee – ainda mantendo as moradias como metáfora – enxerga o capital como algo que pode ser bom ou ruim. Tudo depende. “Há dinheiro bom e dinheiro ruim”, profetiza David, atribuindo a essência ao local, ou à pessoa, de onde a moeda veio. A discussão, porém, é prejudicada por escolhas diretorias estranhas, e um texto que pouco faz para discutir essas ideias.
De longe, a pior parte de Highest 2 Lowest chega quando David recebe a notícia de quem foi de fato sequestrado, e o drama interior do protagonista é externalizado por uma trilha sonora cafona e intrusiva, dando ao que deviam ser debates tensos um clima de humor acidental, algo potencializados por diálogos incoerentes e exagerados. Lee sublinha cada cena no apartamento de David com um piano constante - talvez sua tentativa de compensar a falta de emoção nas atuações fracas de Joseph e Ilfenesh Hadera como Pam, esposa do produtor que, eventualmente, toma uma decisão importante. Quando o filme precisa encenar essa escolha e as consequências dela, as coisas mudam.
Highest 2 Lowest não é bem um filme de ação, mas quando deixa as deliberações emocionais de lado para se movimentar, a capacidade dinâmica de Lee confere inércia a tudo, saltando em direção ao próximo momento com o pique de uma metrópole que nunca dorme. Uma sequência no metrô durante um jogo do New York Yankees pulsa com o fervor da torcida, e de quebra ainda vocaliza a opinião do cineasta e seus conterrâneos ao mandar Boston, a casa dos Red Sox e outros rivais dos times nova-iorquinos, para você sabe onde. Essa troca dos escritórios e quartos pelas ruas e calçadas ilustra as qualidades de um diretor urbano e em sintonia com sua atualidade, usando as várias culturas de NYC para dar gosto e textura a um filme que brilha mais como suspense criminal do que como um exame da alma.
É uma pena, somente, que a mudança do interior pelo exterior seja feita em todos os sentidos. Highest 2 Lowest parece sempre sacrificar o que está dentro. A relação de David e Paul, por exemplo, é posta como o grande pêndulo do drama, mas os personagens são tão subdesenvolvidos que quase não há balanço. A pouca oscilação que vem, existe graças a Denzel Washington.
Colaborando pela quinta vez com Lee, ele preenche cada lacuna deixada no texto com personalidade, carisma e questionamentos. David é uma força porque seu ator é uma força. Onde os diálogos e situações falham, ele traz o peso e consciência de alguém que entende a natureza do que está vivendo, que vê como os boletos atrasados e a desigualdade econômica está motivando as partes envolvidas, que sabe quão difícil será se recuperar de um retorno à realidade financeira de sua juventude nas ruas. O mesmo não pode ser dito por Wright, um grande artista preso num personagem que se resume a seus gestos, e especialmente por A$AP Rocky como uma figura oposta a David. O rapper não entrega uma atuação ruim, mas é incapaz de elevar o que está na página, e Highest 2 Lowest sofre muito por não ter um contraponto dramático para a riqueza material e emocional de King.
A verdade é que é fácil imaginar o roteiro engraçado (talvez até demais, dada a temática) de Alan Fox na mão de um F. Gary Gray ou Antoine Fuqua, realizadores competentes mas limitados que também entenderiam essa versão de High & Low como uma voltada para o gênero e o frenesi moderno. Nas mãos de Lee e Washignton, algumas características sobem aos céus - mas, por mais que estejamos falando de duas das figuras mais talentosas do cinema norte-americano, ainda sobram coisas no inferno.
Highest 2 Lowest
Highest 2 Lowest
Ano: 2025
País: EUA
Duração: 133 min
Direção: Spike Lee
Elenco: Ilfenesh Hadera , A$AP Rocky , Jeffrey Wright , Denzel Washington
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