Hamnet é um espetáculo doloroso sobre luto, legado e eternidade
Chloé Zhao se une a nomes como Spielberg e Sam Mendes em drama sobre a família de Shakespeare
Nem o Oscar, nem o fracasso de Eternos fizeram Chloé Zhao esquecer o pessimismo como tema de suas obras. A luta contra a máquina da Marvel resultou em um filme que fala sobre criação em um tom zen e distante das lutas mirabolantes e fanservices exaustivos. Não foi uma receita abraçada por crítica ou público. Um ano depois, Zhao foi anunciada como diretora de Hamnet, adaptação do best-seller de Maggie O’Farrell, produzida por Steven Spielberg e Sam Mendes. Agora, o filme estreia nos principais festivais do mundo e se firma com méritos como um dos grandes candidatos da temporada de prêmios.
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O livro de O’Farrell reconta a gênese de Hamlet, a obra mais icônica de William Shakespeare, a partir do ponto de vista de sua esposa, Agnes (batizada Anne Hathaway, sim, como a atriz de O Diabo Veste Prada). A trama acompanha o relacionamento do casal, a morte do filho Hamnet, aos 11 anos, e a posterior criação da peça. Jessie Buckley interpreta Agnes, enquanto Paul Mescal dá vida ao dramaturgo.
É difícil fugir dos superlativos ao descrever Hamnet. A diretora constrói uma obra dolorosa e envolvente, mostrando o vínculo entre William e Agnes e, ao mesmo tempo, os caminhos distintos que cada um encontra para escapar das pressões familiares: ele, por meio da escrita e do desejo de se lançar à cidade grande; ela, pela profunda ligação com a natureza. Zhao usa essa conexão de Agnes com a terra, as plantas e os animais para explorar sua visão naturalista, transformando o ambiente em extensão da personagem.
Jessie Buckley está simplesmente extraordinária. Acostumada a papéis intensos, percorre aqui uma jornada completa: da leveza ao caminhar pelas árvores à maternidade sábia e carinhosa, até o luto devastador pela perda do filho para a peste bubônica. Sua força em cenas como o parto, a tentativa de salvar a criança e a primeira montagem de Hamlet é arrebatadora. Nenhuma atuação do ano, até agora, chega perto do que Buckley entrega. Mescal, igualmente impecável, reafirma por que é um dos atores mais requisitados do momento. Zhao filma seu rosto como se fosse uma pintura clássica, evocando a mítica de Shakespeare, que, curiosamente, só é nomeado de fato no final da trama.
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Outro destaque é Jacobi Jupe, que interpreta Hamnet com sensibilidade tocante ao lado de Buckley e Mescal. A cena da despedida entre pai e filho, quando William parte para Londres, sintetiza o rigor da direção de Zhao. Esse cuidado se reflete também na escolha de Noah Jupe, irmão de Jacobi, para viver Hamlet no teatro — gesto que reforça a imersão emocional da narrativa. Agnes, assim como o espectador, é levada a sentir a mesma perplexidade diante do palco.
Se Hamlet nasceu de lendas anglo-saxônicas, Hamnet mostra como a dor de uma família moldou reflexões sobre a fragilidade da existência. “Lembra-te de mim”, diz o fantasma do rei a seu filho na peça. Essa memória é o fio condutor: a herança transmitida por Agnes, o legado do teatro, a troca de papéis entre os gêmeos Hamnet e Judith — brincadeira que reflete o próprio pacto do público com a ficção — e o sacrifício que ecoa no tempo. O sacrifício do irmão que troca sua herança pelo bem do outro.
Hamnet se torna um conto que transforma em realidade os ecos da peça de Shakespeare, sem nunca precisar de metáforas baratas sobre o talento do autor ou momentos de sua vida replicados na peça. No espetáculo visual de Chloé Zhao e no talento de Buckley e Mescal, são as palavras, os sentimentos, a universalidade da dor e o nosso medo da finitude que fazem da história de Agnes e da família uma experiência tão dura. A eterna busca pelo sentido da vida, como o mítico “Ser ou não ser”.
[Crítica publicada em 08 de setembro, durante o Festival de Toronto]
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